domingo, janeiro 24, 2010

serbis

(...) O sujeito precisa do olhar da câmara como uma espécie de garantia ontológica da sua existência...

Em relação a este paradoxo do olhar omnipresente, aconteceu há pouco tempo uma coisa curiosa com um amigo meu na Eslovénia: uma ocasião, voltou ao escritório à noite, porque precisava de terminar um trabalho; antes de acender a luz viu, no escritório que ficava do outro lado do pátio, um par constituído por um administrador (casado) e a respectiva secretária a fazer amor apaixonadamente em cima da mesa. No meio da sua paixão, esqueceram-se de que havia um edifício do outro lado do pátio, do qual podiam ser vistos com nitidez, dado que o escritório estava brilhantemente iluminado e as enormes janelas não tinham cortinas... O que o meu amigo fez foi telefonar para o escritório da frente e, quando o administrador interrompeu por breves momentos a sua actividade sexual e foi atender o telefone, murmurou maldosamente para o aparelho: "Deus está a vê-los!" O pobre homem caíu para o lado e quase teve um ataque cardíaco... A intervenção desta voz traumática, que não pode ser directamente situada na realidade, talvez seja o mais próximo que podemos chegar da experiência do Sublime.

(...) Uma das técnicas clássicas dos filmes de terror é a "ressignificação" do plano objectivo em plano subjectivo (aquilo que o espectador começa por apreender como um plano objectivo —por exemplo, uma casa com uma família a jantar— revela-se subitamente, através de marcadores codificados, por exemplo um ligeiro tremor da câmara, a banda sonora "subjectivada", etc., como o plano subjectivo de um assassino a espreitar as suas vítimas potenciais). Porém, esta técnica tem de ser complementada como o seu oposto, a inversão inesperada do plano subjectivo no plano objectivo: no meio de um plano longo marcado indubitavelmente como subjectivo, o espectador é bruscamente obrigado a reconhecer que
não há sujeito possível dentro do espaço da realidade diegética que possa ocupar o ponto de vista deste plano. Assim, não estamos aqui perante a simples inversão do plano objectivo no plano subjectivo, mas face à construção de um lugar de subjectividade impossível, uma subjectividade que confere à própria objectividade um aroma de um mal indizível e monstruoso. Pode reconhecer-se aqui toda uma teologia herética, que identifica secretamente o próprio Criador com o Diabo (que já era a tese da heresia cátara na França do século XII). São exemplos desta subjectividade impossível o plano subjectivo, filmado do ponto de vista da própria Coisa assassina, do rosto transfigurado do detective Arbogast moribundo em Psico, ou, em Os Pássaros, o famoso plano do incêndio da baía de Bodega filmado da perspectiva de Deus, que, depois, com a entrada dos pássaros na imagem, é ressignificado, subjectivado, tornando-se no ponto de vista dos próprios agressores (...).


Slavoj Žižek, in Lacrimae Rerum, "Alfred Hitchcock ou Haverá uma Maneira Certa de Fazer o Remake de um Filme?", trad. Luís Leitão


terminei este trecho com o chá vermelho, deu o gongo e eu fui ver um grande filme que nada faria suspeitar vir dar sentido a tudo isto. mas deu. e haja quem lhe cunhe a linguagem como "documental", "verité", "indie", o que quiserem. o que há aqui é muito cinema. e do clássico. em corte ou em sequência. Kinatai fica para próximas núpcias, que a noite foi de escolhas difíceis. e este lindo serviço já me deu muito em que pensar. nome para a prateleira dos faróis: Brillante Mendoza, filipino, alucinado e genial.

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