terça-feira, setembro 19, 2006

A medida certa

"As meninas sonham parecer-se com as modelos das passarelas. Quando essas modelos estão abaixo do peso normal de uma forma doentia, isso pressiona as jovens a passarem fome para ter um aspecto semelhante."


É este género de argumento - neste caso da ministra da Cultura do Reino Unido, que parece querer apressar-se a seguir esta peregrina novidade espanhola - que me deixa possessa. Infelizmente não consegui encontrar na edição on line a coluna do psicólogo convidado a opinar sobre o assunto - e agora não me lembro do nome do senhor. Pois, seja como for que se chame, quero agradecer-lhe do fundo do coração. Pois hoje, através das respostas que deu ao DN, fiquei a saber pelo jornal que não menstruo [até me tinha dado jeito para o deserto, mas não, lá tive de comprar as serviettes Lilás, quase da espessura dos velhos Modess] e que não posso ter uma vida normal e saudável. É verdade, senhores, choque dos choques, eu confesso: o meu Índice de Massa Corporal é inferior a 18, o valor que pelos vistos é o mínimo legal. Mas tenho de ler estas barbaridades pelo jornal. Como vejo o que se passa à minha volta, como sei o que custa crescer mulher neste mundo e tenho de ouvir e ler que a culpa dos distúrbios alimentares é das manequins, tantas das quais, como eu, são magras naturalmente e até se esforçam para engordar. E a culpa da auto-mutilação, deve ser uma herança árabe, por cada falta um corte na carne. E a culpa do suicídio deve ser do Sid Vicious, do Ian Curtis, do Sá Carneiro, do Camilo, do Sócrates! E a culpa querer parecer normal e limpo quando por dentro os novelos se acumulam por baixo das camas e o pó dos não-ditos cobre cada milímetro, é da Yoko. E a culpa de gostar de não ser nada mas parecer tudo, ser famoso por ser famoso, essa, é dos Morangos. Ou do Andy Warhol.

Será que ninguém acha estranho que quando se estuda a fundo o problema se chegue à conclusão de que a maior parte das anoréticas são as melhores alunas da turma ou da escola, que são inteligentes, articuladas, daquelas miúdas de quem toda a gente acha que têm imenso potencial, sei lá? Acham mesmo que esse perfil se coaduna com o lento suicídio pela fome para se ficar igual a uma tipa que anda para trás e para a frente em cima de um arremedo de palco? Mas será que só eu é que conheço mulheres e homens estupidamente magros e com um apetite normal e mesmo superior ao normal, sem que isso seja sinónimo de qualquer distúrbio? Será que só eu tenho o azar de ser assim num país onde as curvas são tudo e meio mundo gosta de dizer com ar compungido, Ai, mas estás tãããão magrinha!? Mas está tudo grosso, ou quê?!

Uma vez li, precisamente na Vogue, uma frase que me fez bem. Era qualquer coisa como: "as manequins como Twiggy e Kate Moss vieram alargar o padrão de beleza feminina, fazendo reconhecer a sensualidade e a beleza física das mulheres mais magras e menos voluptuosas." Esta coisa óbvia é demasiado difícil de compreender pelos guardiões do asseio sócio-mental que arrotam sentenças com tanta facilidade. Ao senhor doutor que tem tantas certezas da amenorreia, infertilidade, disfunção generalizada e morte de qualquer mulher magra tenho umas coisinhas só a dizer: a Twiggy, a última vez que a vi [há já uns anos, num filme ranhoso qualquer], era uma gloriosa e enxuta quarentona, e não asseguro, mas acho que até deixa descendência biológica; a minha mãe, duas vezes mãe, deu-me uma saia que vestia com a minha idade e onde eu não caibo nem em apneia prolongada; uma das minhas melhores amigas, antiga bulímica e anorética [a ponto de ter mesmo perdido a menstruação] é hoje mãe de um maravilhoso e saudável rapaz - e sei que não foi por querer parecer a Kate Moss que adoeceu, antes tivesse sido, seria um problema bem menor do que os que ela tinha. Mas novamente, obrigada pela informação. Da próxima vez que for às compras, escuso de gastar dinheiro em tampões, e com a crise que está, sempre poupo uns cobres. Santa paciência...



Vejo-me, portanto, obrigada a citar a minha tão abominada fur lover, Fátima Lopes, que é muito terra-a-terra no que toca a este assunto. Cá vai, e aproveitem, que isto é uma vez sem exemplo:

A estilista e directora da agência Face Models, Fátima Lopes, considerou a medida "ofensiva, discriminatória e ridícula". Para a estilista, a decisão mais não faz do que "transformar a moda um bode expiatório" de uma doença com causas "muito mais profundas". Além disso, considera que há mulheres "naturalmente magras mas que não estão doentes e que vão ser discriminadas por uma regra ridícula." Qualquer dia, acrescenta, "as manequins também não podem ser bonitas porque senão as feias ficam perturbadas."

Em Portugal, explica a directora da Face, "as manequins não são muito magras e, por isso, uma medida dessas não teria muitas consequências". Já em Paris, Milão e Nova Iorque, "teria graça assistir a uma decisão dessas". Fátima Lopes ri-se: "Estamos a falar de manequins naturalmente magras! Ficavam todas de fora!"


Crescer mulher é uma aventura terrífica. Cheia de descobertas, de medos, de assaltos armados, de coragem, de humilhação, de maturação. A comida é um dos aspectos em que os problemas se manifestam, e realmente a anorexia e a bulimia são verdadeiras epidemias que não devem ser encaradas levemente. Mas os problemas não estão na capa da Vogue. Haja decoro, senhores, que só os parvos entram na barca e é quase certo que esta gente há-de ir toda para o inferno.

11 comentários:

Daniel disse...

Acho de facto maravilhoso que a classe política continue a tentar fazer-nos acreditar que é com leis e proibições que se muda a sociedade. "Esqueceram-se das promessas de abril..." diz o J. M. Branco no brilhante texto FMI, porque tudo isto tem um cheirinho nosso conhecido. É como proibir ser pobre ou ser triste.
Falando de tristeza...

Shyznogud disse...

Engraçado, chamaram-me agora a atenção do seu texto, dizendo-me "Só vocês as grandes e as magras é q se irritam com esta notícia". Também eu, contrariando a tendência geral, achei tal decisão uma idiotice e disso fiz eco lá no meu antro:
http://womenageatrois.blogspot.com/2006/09/d-se-prmio.html

http://womenageatrois.blogspot.com/2006/09/voltando-vaca-fria-ou-magra-ou-gorda_20.html

Manel disse...

Por acaso a maior parte das mulheres que eu conheço, grandes e magras incluídas, deixam-se levar na ideia de que esta proibição é um grande avanço. Algumas lá ficam a pensar nos meus argumentos, outras nem isso, tal é a intoxicação. Passar modelos gordos é bom para a auto-estima das mulheres, passar modelos magros é um incentivo à anorexia, sim senhor. As mulheres grandes e magras não são mulheres, portanto. A este lote deve juntar-se as lésbicas, porque não podem experimentar a maternidade - Villas Boas dixit. E as que abortaram também, por falta de instinto maternal.

Tão pouco que ficou das lutas idas. O meu slogan preferido perdeu-se totalmente: "É proibido proibir".

Mas o que me irrita mesmo é mitificar a anorexia como uma doença tão estúpida, em vez de lhe reconhecer as causas bem profundas que tem. Seria muito mais perturbador tentar perceber porque razão tantas mulheres tendem a ter comportamentos auto-destrutivos. Mas isso não interessa pensar, tira a responsabilidade dos ombros das modelos esqueléticas e põe-na nos nossos... coisa de que fugimos histo[e]ricamente a sete pés.

Shyznogud disse...

dos 3 requisitos "impostos" para, afinal, ser homem só me falta é ser lésbica. Ou será q cumprindo só parte deles já sou? Ai, só coisas q me angustiam
A sério, faz-me muita impressão como é que gente, q considero inteligente, papa acriticamente coisas como esta. Ao fazê-lo estão, de certa forma, a pactuar com a ilusão de que a anorexia é uma "tonteria de adolescentes". E isso é muito grave.

Manel disse...

Mesmo muito grave.

violeta13 disse...

talvez lhes fizesse bem um atelier Stanislavskiano!

Manel disse...

A quem não faria?... ;)

fausto disse...

A Joana Manuel é anoréctica?
Porque da última vez que a vi a actuar todos comentámos entre nós que era obscenamente magra... talvez tivesse algum problema! Esperemos que não, dado que talento não lhe falta...

Manel disse...

Agradeço-lhe o elogio, mas será que o Fausto leu o texto que comenta? É que se o tivesse lido não teria feito essa pergunta dessa forma, digamos, obscenamente grosseira.

fausto disse...

Li sim, aliás dei com este texto, precisamente porque tive curiosidade, depois de a ver, de perceber se sofria realmente do problema. E conclui pelo texto que senão sofre de anorexia, sofrerá de qualquer perturbação de imagem corporal e está em negação, porque uma coisa é ser magra outra coisa é ser esquelética. Em qualquer sítio do mundo e em qualquer período histórico, seja anorexia ou outra, sempre foi sintoma de doença. É verdade que a Kate Moss contribuiu para que o consumidor de heroina tivesse algum glamour, mas ele n deixa de ser consumidor de heroina, por ex.
Cumprimentos e as melhoras.

Manel disse...

Fausto, eu até podia tentar argumentar consigo, mas não me parece que valha a pena. Pela sua resposta depreendo que ou não leu o texto e os comentários subsequentes e está em negação, ou leu o texto e está em negação de que é um idiota mal-educado. E não especulo mais sobre as possíveis perturbações de que possa sofrer, porque mesmo que fosse psicóloga, penso que seria anti-ético avaliá-lo sem o conhecer. Passe bem. Ou mal, enquanto eu vou ali vomitar o meu jantar.