A medida certa
"As meninas sonham parecer-se com as modelos das passarelas. Quando essas modelos estão abaixo do peso normal de uma forma doentia, isso pressiona as jovens a passarem fome para ter um aspecto semelhante."
É este género de argumento - neste caso da ministra da Cultura do Reino Unido, que parece querer apressar-se a seguir esta peregrina novidade espanhola - que me deixa possessa. Infelizmente não consegui encontrar na edição
on line a coluna do psicólogo convidado a opinar sobre o assunto - e agora não me lembro do nome do senhor. Pois, seja como for que se chame, quero agradecer-lhe do fundo do coração. Pois hoje, através das respostas que deu ao DN, fiquei a saber pelo jornal que não menstruo [até me tinha dado jeito para o deserto, mas não, lá tive de comprar as
serviettes Lilás, quase da espessura dos velhos Modess] e que não posso ter uma vida normal e saudável. É verdade, senhores, choque dos choques, eu confesso: o meu Índice de Massa Corporal é inferior a 18, o valor que pelos vistos é o mínimo legal. Mas tenho de ler estas barbaridades pelo jornal. Como vejo o que se passa à minha volta, como sei o que custa crescer mulher neste mundo e tenho de ouvir e ler que a culpa dos distúrbios alimentares é das manequins, tantas das quais, como eu, são magras naturalmente e até se esforçam para engordar. E a culpa da auto-mutilação, deve ser uma herança árabe, por cada falta um corte na carne. E a culpa do suicídio deve ser do Sid Vicious, do Ian Curtis, do Sá Carneiro, do Camilo, do Sócrates! E a culpa querer parecer normal e limpo quando por dentro os novelos se acumulam por baixo das camas e o pó dos não-ditos cobre cada milímetro, é da Yoko. E a culpa de gostar de não ser nada mas parecer tudo, ser famoso por ser famoso, essa, é dos Morangos. Ou do Andy Warhol.
Será que ninguém acha estranho que quando se estuda a fundo o problema se chegue à conclusão de que a maior parte das anoréticas são as melhores alunas da turma ou da escola, que são inteligentes, articuladas, daquelas miúdas de quem toda a gente acha que têm
imenso potencial, sei lá? Acham mesmo que esse perfil se coaduna com o lento suicídio pela fome para se ficar igual a uma tipa que anda para trás e para a frente em cima de um arremedo de palco? Mas será que só eu é que conheço mulheres e homens estupidamente magros e com um apetite normal e mesmo superior ao normal, sem que isso seja sinónimo de qualquer distúrbio? Será que só eu tenho o azar de ser assim num país onde as curvas são tudo e meio mundo gosta de dizer com ar compungido,
Ai, mas estás tãããão magrinha!? Mas está tudo grosso, ou quê?!
Uma vez li, precisamente na Vogue, uma frase que me fez bem. Era qualquer coisa como: "as manequins como Twiggy e Kate Moss vieram alargar o padrão de beleza feminina, fazendo reconhecer a sensualidade e a beleza física das mulheres mais magras e menos voluptuosas." Esta coisa óbvia é demasiado difícil de compreender pelos guardiões do asseio sócio-mental que arrotam sentenças com tanta facilidade. Ao senhor doutor que tem tantas certezas da amenorreia, infertilidade, disfunção generalizada e morte de qualquer mulher magra tenho umas coisinhas só a dizer: a Twiggy, a última vez que a vi [há já uns anos, num filme ranhoso qualquer], era uma gloriosa e enxuta quarentona, e não asseguro, mas acho que até deixa descendência biológica; a minha mãe, duas vezes mãe, deu-me uma saia que vestia com a minha idade e onde eu não caibo nem em apneia prolongada; uma das minhas melhores amigas, antiga bulímica e anorética [a ponto de ter mesmo perdido a menstruação] é hoje mãe de um maravilhoso e saudável rapaz - e sei que não foi por querer parecer a Kate Moss que adoeceu, antes tivesse sido, seria um problema bem menor do que os que ela tinha. Mas novamente, obrigada pela informação. Da próxima vez que for às compras, escuso de gastar dinheiro em tampões, e com a crise que está, sempre poupo uns cobres. Santa paciência...
Vejo-me, portanto, obrigada a citar a minha tão abominada
fur lover, Fátima Lopes, que é muito terra-a-terra no que toca a este assunto. Cá vai, e aproveitem, que isto é uma vez sem exemplo:
A estilista e directora da agência Face Models, Fátima Lopes, considerou a medida "ofensiva, discriminatória e ridícula". Para a estilista, a decisão mais não faz do que "transformar a moda um bode expiatório" de uma doença com causas "muito mais profundas". Além disso, considera que há mulheres "naturalmente magras mas que não estão doentes e que vão ser discriminadas por uma regra ridícula." Qualquer dia, acrescenta, "as manequins também não podem ser bonitas porque senão as feias ficam perturbadas."
Em Portugal, explica a directora da Face, "as manequins não são muito magras e, por isso, uma medida dessas não teria muitas consequências". Já em Paris, Milão e Nova Iorque, "teria graça assistir a uma decisão dessas". Fátima Lopes ri-se: "Estamos a falar de manequins naturalmente magras! Ficavam todas de fora!"
Crescer mulher é uma aventura terrífica. Cheia de descobertas, de medos, de assaltos armados, de coragem, de humilhação, de maturação. A comida é um dos aspectos em que os problemas se manifestam, e realmente a anorexia e a bulimia são verdadeiras epidemias que não devem ser encaradas levemente. Mas os problemas não estão na capa da Vogue. Haja decoro, senhores, que só os parvos entram na barca e é quase certo que esta gente há-de ir toda para o inferno.