quinta-feira, agosto 27, 2009

às vezes o tempo certo não é o tempo pré-determinado

Aqui é onde vivo e é quasi primavera. Vê-se.
Antigamente, isto é, antes, as coisas deste lugar, as pedras, as plantas, os sons, tomavam-me como se de passagem.
Agora vivo aqui. Perceberam que vivo aqui.
Viver num lugar obriga a acertas atitudes conjugadas com esse lugar.
Tenho que estar atenta.

Há aqui uma velha glicínia que se finje morta.
Dos velhos troncos da glicínia espreitam-me uma infinidade de olhos e eu tenho que estar atenta.
Eu sei que subitamente, julgando-me desprevenida, ela vai estalar.
De riso para me perturbar.
Pela manhã estará cheia de flores abertas, feliz por me ter enganado fingindo-se morta.
Porque nunca vivi aqui antes e ela floriu para outros cada ano e eu não sei os seus costumes, nem sei como os outros para quem ela floriu antes aceitavam o seu jogo de florir e se ela se fingiu morta cada ano para eles como este ano se fingiu morta para mim, não sei se deva mostrar-lhe espanto.
É uma velha glicínia...
Os velhos (que idade tenho hoje?), os velhos gostam que se mostre espanto pelas coisas que fazem e pelas coisas que fizeram, como se as fizessem ou tivessem feito de uma forma única, pessoal, descoberta por si próprios ao longo do esforço do seu esforço de viver.
É uma velha glicínia.
Devo, portanto, mostrar-lhe espanto pela sua renovada novidade de florir.

Que idade é preciso ter para saber coisas como estas pequenas coisas, tais como perceber o que as criaturas não querem que se perceba abertamente, mas sim de uma maneira adivinhada e não dita?
Afinal sou muito mais velha do que a velha glicínia. Porque os velhos são sábios. Além de pueris.
Quando lhe mostrar espanto por vê-la florida serei tão velha como se sua mãe.
Mas o gosto de a ver florida far-me-á tão nova como cada uma das suas flores novas.

Ontem floriu neste lugar a grande amendoeira.
Que idade tinha eu ontem (ou no mês passado), quando floriu a grande amendoeira de flores brancas?
Floriu para mim, suponho. Gostei muito.
Encostei-me ao seu tronco e olhei para cima.
Ela arredondou-se como uma grande esfera, como uma cúpula de flores brancas e riu-se de gozo.
Pensei nas coisas deslumbrantes que me dão.
Pensei no que me tens dado.

Depois disso floriu a amendoeira das flores cor de rosa.
Mas essas, as flores cor de rosa, correram por aqui e por ali por entre as ramadas das oliveiras para me fazer rir, para que eu as procurasse uma a uma por entre as ramadas das oliveiras.
Eram flores para os olhos e para o riso, enquanto as outras, as flores brancas da grande amendoeira, eram flores tranquilas para o conjunto de ver, de respirar, de amar as coisas em volta, mesmo as coisas que não tinham que ver com a grande amendoeira e a sua cúpula de flores brancas.

Que idade tive nesses dias?
Menos talvez do que amanhã ou talvez incrivelmente mais.
Que idade terei amanhã?

Que idade tenho quando te vejo do meu lado esquerdo?
Isso não tem que ver com a idade que terei amanhã. Nem com a idade que tive ontem.
Mas tem seguramente que ver com a idade que tenho hoje.
Com a minha idade de todos os dias que são exactamente os dias de hoje.
Chamo dias de hoje aos dias que decorrem dentro de uma grande lucidez.
Forçosamente, coloquei-te dentro dos dias extremamente lúcidos.
Hoje.
Olhando-te vejo-te imóvel na tua idade inalterável.
Vejo o teu lado direito.
Nunca me será dado ver o teu lado esquerdo. Porque, mesmo que abrisses para mim as tuas janelas, eu só poderia ver nelas, olhando-as, o teu rosto.
Um rosto é uma peça hermética.

É de difícil acesso, o nosso lado esquerdo.

Tu pertences aos dias extremamente lúcidos e agora estou falando apenas nos dias das minhas idades mutáveis e incertas e deste lugar que vivo agora onde me permito sair do tempo às vezes.
E nada me impede de fazer anos amanhã. Ou depois de amanhã. Vou festejá-los como é costume, em superfície e no primeiro plano.


in
Árvores de Domingo, Maria Keil



Gérard Castello-Lopes, Lisboa 1956

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