terça-feira, agosto 24, 2010

o cavalo

(este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. ele está muito acima de mim. humildemente tentei escrevê-lo. eu sou mais forte que eu. C.L.)


Depois foi fácil telefonar para Ulisses e dizer-lhe que mudara de ideia e que podia ir esperá-la ao bar. Era cruel o que fazia consigo própria: aproveitar que estava em carne viva para se conhecer melhor, já que a ferida estava aberta. Mas doía de mais mexer-se nesse sentido. Então preferiu apaziguar-se e planejou que, no táxi, pensaria no nariz recto de Ulisses, na sua cara marcada pela aprendizagem lenta da vida, nos seus lábios que ela jamais beijara.

Só que ela não queria ir de mãos vazias. E assim como se lhe levasse uma flor, ela escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer: "Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem — pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela — apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é húmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."

Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela própria. Era?



Clarice Lispector, in Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres

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