domingo, setembro 21, 2008

o cheiro


Lisboa, 18 de Setembro de 2008




Ela já não está lá. Foi a mãe lisboeta a quem o meu pai alentejano pagava a renda do quarto —sempre que podia, pelo menos—, mas era jovem demais para ser uma avó. Era mais do que isso. Era a madrinha. A Gida. A típica coquette de São Bento, familiar de cada pedra da calçada entre a Praça das Flores e a Baixa, para mim, que vim tarde, foi sempre velha sem idade, a única visita de família que me entusiasmava, a única que se tornou minha quando a família deixou de ter poder para impor visitas. A Gida era uma beleza. Cheia de luz e de bondade, de alegria e de vontade das pessoas que amava, feliz do seu passado e transbordando presente. Também porque pôde, uma vida burguesa, sem filhos e sem percalços de maior, assistindo acordada às convulsões e vendo-as passar, com a cidade, com viagens, com muita conversa e muito riso e algum vinho, com espaço para todo o amor que encontrava espaço dentro dela. Muito espaço. A Gida era tão nova que nunca num milhão de anos o bilhete de identidade poderia ter razão, não na data, porque a Gida era tão nova que só podia ter o século estampado nos olhos, mas no nome, porque a Gida não se chamava Hermenegilda, como eu descobri em pasmo no primeiro ano da minha alfabetização. Hermenegilda Sande. E é mentira. Porque era a Gida. E não me lembro se alguma vez lhe recordei o apelido de solteira, mas Sande não era ela, era o Zé. E o Zé era, sim, o padrinho, o doce padrinho, mas acima de tudo, era o marido da Gida, não por qualquer relação de poder estabelecida, mas por uma natural organização daquele sistema solar, a Gida, o Sande, e os periquitos que saíam no ombro à rua e que ela ensinava a falar. E a prova é que quando o sol se apagou todos o pensámos, mas só alguns o dissemos a medo triste, ele não dura mais do que um ano. E um ano depois, contado, foi do Zé que nos despedimos. E o meu pai um pouco mais velho, mais triste, mais órfão.

A Gida usava base e riscava os olhos de preto e tinha um sorriso que comia qualquer batôn vermelho que aos seus lábios se atrevesse. E claro, cheirava sempre quanto bastasse a um perfume quente e transparente, o perfume a que eu achava que cheiravam todas as senhoras velhotas que pintavam o cabelo e a cara. Mas só na Gida era transparente, nas outras era apenas quente. E ligeiramente enjoativo. A Gida amou-me-nos, a todos em seu redor, incondicionalmente, sem juízos, sem negrumes, sempre de braços abertos. Tratou uma sogra acamada em casa até à morte como mais uma simples inevitabilidade, uma feliz inevitabilidade, afinal quantos se podem orgulhar de morrer nos anos 80 seguintes aos anos 80 em que nasceram? A Gida gostava de touradas e de casinos e divertiu-se imenso connosco na festa do Avante!, afinal o Alto da Ajuda até ficava ali mesmo à mão. E gostava de gente boa. E de mim, que não gosto de touradas e vejo nos casinos uma espécie de jardim zoológico. Há demasiado tempo que a Gida já não está lá, no prédio cor-de-rosa de São Marçal, mas estou eu à sua porta, e de repente toda a memória volta e preenche a rua sem trânsito e a janela fechada da casa aonde não voltei. Espanto-me com o ar da tarde que faz passar o perfume dela, quente e transparente, sob o meu nariz. E então percebo tranquila que foi por acaso que ao fim de tantos anos a passar a poucos metros, fui ali matar saudades.

4 comentários:

Flanco disse...

...e dás-me razão.

polegar disse...

as coisas boas de sempre visitam-nos quando lhes apetece.
nós só podemos [temos] de abrir os braços e deixá-las permanecer.

Manel disse...

:)

dois :).

Anónimo disse...

É isto que nos faz ;)