sexta-feira, maio 30, 2008

chão de luz [auto-retrato]

Lisboa, Maio de 2008



O Quereres - Caetano Veloso

repouso

Lisboa, Maio de 2008



... que um gajo quando acaba de tocar o Rach3 está cansado.

quinta-feira, maio 29, 2008

perto do rio

Ao rever o vídeo do Camané que postei há dias [semanas? meses?], com o meu puto que hoje chegou toda contente por se ter cruzado à tarde com o próprio, houve algo que se impôs no meio da melancolia a preto e branco. Muito do sublime ambiente vem dos brancos arranjos que desarranjam continuamente o fado, enchendo-o de silêncio, depurando-o. Mas o essencial está no fadista, ou melhor, no artista. Para além do veludo coçado da voz, é o tempo que o distingue. O tempo das pausas, o tempo das suspensões de Camané é sempre um pouco mais curto do que seria de esperar, como se, no momento imediatamente anterior a alcançar a perfeição romântica do fado, desistisse. Quando termina o arco, ainda poderia, seguramente, continuá-lo, terminá-lo. Mas não o faz para fora. Termina-o em si mesmo, contém-no antes que se desvaneça, para depois continuar.

às vezes é gramático

Há pessoas que conseguem falar sem pontos finais. Tempos e tempos e tempos sem um ponto final. Usam muitas vírgulas de exclamação, mas pontos, nem vê-los.

nossa senhora da rtp

Judite de Sousa berra uma entrevista com o famoso Pitanguy, cirurgião-mor no país da cirurgia plástica generalizada, o Brasil. Ao falar das actrizes, modelos e afins de nome sonante que já passaram pelas mãos do excelso —e curtido— médico, a entrevistadora usa a extraordinária expressão "as mulheres que precisam da cara para trabalhar".

Regra dos três segundos, breve silêncio, e eu e o meu puto, em divisões diferentes da casa desmanchamo-nos numa gargalhada uníssona. Diz o Puto, pianista: "Quer dizer, pensando bem, eu até me safava só com as mãos..."

conversas de café: da crueldade emocional

Há pessoas que têm o condão de resumir muito luminosamente coisas que por vezes esqueço que sei. "As crianças são cruéis, e testam os limites da sua crueldade naqueles que amam, naqueles com quem têm crédito."

Era uma analogia certeira, na boca da A., e claro, três gajas ao almoço, depois de dançarem durante duas horas, nem vou dar-me ao trabalho de aqui registar o tema da conversa. A minha pergunta, dilacerante, impaciente, incrédula, é apenas esta: e até que idade se poderá dar o desconto da infantilidade? Até que idade se admite a inimputabilidade?

Até que idade cada um de nós escolhe refugiar-se na inimputabilidade? Quando é que a crueldade passa a ser apenas isso, crueldade, em vez de uma perversa forma de amor aterrorizado?

conversas de café: da fatal misoginia à prova de benzina

Há uma frase de Petra von Kant que em certos contextos me ressalta na memória: "Querida Sidonie, parece-me que não estás muito habituada a mulheres que pensam..." Pois eu não consigo habituar-me a outra coisa. Aliás, acho que a maior parte das mulheres burras não é realmente burra, decide sê-lo por sobrevivência, por carência, por uma desaguisada necessidade de amor. É mais fácil prender um objecto de desejo que não se assusta connosco, e nesta terra de ases da negação, o mais liberal dos liberais treme que nem cana verde face a uma mulher verdadeira e acordada. Mulher inteligente, mulher prática, adapta-se às circunstâncias e aprende a fazer de conta que acredita que é amada por alguém que se desmoronaria e fugiria se ela não se escondesse entre mil véus. Torna-se mãe. Ou se torna burra. Fala de gatinhos fofinhos e diz que sim. E sorri muito. Ou chora muito. Ou ambas as coisas. E um dia morre. Verdadeiramente sozinha. Porque para se encontrar com outra pele, andou sempre aos encontrões consigo mesma.

eu também não

recebido por e-mail

quarta-feira, maio 28, 2008

as palavras e o acaso 8.0 [ou qualquer dia vendo o estaminé à Fiona]

Sallys Song - Fiona Apple

three days and a long journey to go

Os sapatos de carácter fechados na caixa há cinco ou seis anos ainda encaixam que nem uma luva, e a confiança está lá, nas solas, nos saltos, nos pés que dançam em terreno familiar, fértil, feliz, feito de muitos risos e muitas emoções, alguns conflitos, alguns aplausos. Do tempo em que o teatro já estava na minha vida, mas disfarçado. Já era eu, ainda que eu já não seja a mesma. Dói-me o rim direito e o gémeo esquerdo. Mas é realmente difícil não ficar viciado no ácido láctico, sentir cada músculo, vibrante, o corpo ansiando por uma cama, mas vivo, luminoso. Pulsante. Capaz.

...e...

Os mundos misturam-se, tocam-se, até se entre-ajudam se for o caso, mas são diferentes. Irremediavelmente diferentes. Não são as pessoas que são diferentes, as pessoas são sempre as mesmas. São mesmo os mundos que divergem. E outros que se encontram ou reencontram e reconhecem. No pacote do Nicola não saíu: "Um dia vou à Índia com as minhas amigas". Mas foi como se tivesse saído.


...e...


O que é cantar? Porquê cantar? Para quê cantar? A cada um as suas razões. Mas uma coisa sei: gosto de circo, mas só às vezes. E vozes bonitas, já diz o grande sábio da avenida de Berna, há muitas na apanha da fruta.


...e...


Que bom é sentir tantos medos acabrunhados, com o rabo entre as pernas. Pensando não saber o texto, sei-o e deixo-o instalar-se no corpo a uma velocidade que nunca senti antes. Pensando não saber o texto, arranco para a primeira contracena como se fosse já a vigésima, como se a inexistente segurança permitisse todos os riscos. O D. diz que não há problema, que me ponta, se for preciso, mas afinal nem abre a boca, afinal eu sei o texto. O Z.P., que não sabe o texto, quase nem olha para o papel e os olhos dele dão-me tudo o que preciso naquele momento. Não tenho medo, só vontade. Será que percebi finalmente onde está a tecla de "pausa" na minha máquina de pensar?


...e...


Como boa alentejana, se me derem um dia solarengo, um chaparro e uma malga de vinho, fazem-me feliz. Mas o trabalho, magano, consegue saber melhor que medronho.

segunda-feira, maio 26, 2008

L

Cheguei de noite, amanhã me acordarás.

domingo, maio 25, 2008

até

TNSJ, Abril de 2008


É a primeira vez em quatro anos que me despeço sem saber quando regresso. Não digo adeus. Nunca se diz adeus a uma casa onde se cresceu tanto que se voltou a nascer.

divergências significantes: a identidade

A man who lives through conscience becomes hard. A man who lives through consciousness remains soft. Why?--because a man who has some ideas about how to live, naturally becomes hard. He has continuously to carry his character around himself. That character is like an armor; his protection, his security; his whole life is invested in that character. And he always reacts to situations through the character, not directly. If you ask him a question, his answer is ready-made. That is the sign of a hard person--he is dull, stupid, mechanical. He may be a good computer, but he is not a man. You do something and he reacts in a well- established way. His reaction is predictable; he is a robot. The real man acts spontaneously. If you ask him a question, your question gets a response, not a reaction. He opens his heart to your question, exposes himself to your question, responds to it....

Osho, Take it Easy, Volume 1 Chapter 13

cancela

Vem aí um novo semestre, meio ano por estrear, por percorrer. Despeço-me do quarto cujo tecto foi o chão das noites brancas que —ainda— não esqueço. Despeço-me do quarto onde não estiveste, na esperança de que nele fiques, encerrado a uma só chave. Não me peças que deixe a porta aberta. Tem-na no bolso, a chave. Podes sair assim que queiras.

penso, ou existo?

Onde ontem vi um espectáculo absolutamente rítmico e sem quebras, o M viu um espectáculo a puxar para o histérico. Hoje alguns de nós tinham uma sensação estranha, de que a energia tinha oscilado muito e com ela o ritmo. Eu, que acho que este café é quase uma italiana que se bebe de um trago, hoje tive a sensação de que nunca mais se chegava ao segundo acto e depois ao terceiro, uff. Sentencia o nosso encenador que não, que foi equilibradíssimo, de tempos justos e pica presente. Muito melhor que o de ontem, claro!

... Claro. É nestas alturas que se torna bem evidente porque é que actores que pensam demais são verdadeiras pains in the ass, mea culpa, mea maxima culpa. E então? A verdade é que, fervilhando em cada corpo, há um nível mínimo que já temos entranhado e abaixo do qual parece já ser impossível descer. Por outro lado, a carreira-relâmpago dá-nos uma sensação muito presente de que é este o tempo que temos e queremos sugá-lo até ao tutano. Talvez pela proximidade da morte, temos um espectáculo que vive pujantemente a cada noite [e a maior parte do elenco, a levar porrada em ensaios vespertinos, anda literalmente de rastos]. E para além de tudo, há uma coisa que privilegiadamente o palco nos saca: a inteligência da intuição, do corpo, do espaço, dos outros, uma inteligência que não pensa, apenas é. Na cena com as minhas sisters, e apesar de ler, desde o início da função, uma certa pasta no ar, soube claramente que o ritmo estava no ponto, picado e vibrante. Não porque o tenha pensado. Senti, só isso. Estava certo. Só isso. E todos os dias me dou graças a mim própria por me ter decidido a enfrentar o teatro. Lições como esta, que tenho aprendido e reaprendido no palco ao longo desta pouco mais de meia-dúzia de anos, não têm preço. Nunca as minhas mãos ficam vazias.

...e amanhã, acaba. Assim, ainda mal começado. Assim, tão pronto para continuar a estrear todas as noites. Mortes. E nascimentos, sucessivamente. Talvez para que não nos esqueçamos de que é a vida que no fim justifica esta coisa a que chamamos profissão.

sábado, maio 24, 2008

as palavras e o acaso 7.0

Paper Bag - Fiona Apple


... I thought it was a bird, but it was just a paper bag.

falta um dia e 1/2 [ou Lying in the reeds]

All I Need - Radiohead

isto não são horas para cafeína!

Mas o cafézinho de hoje foi daqueles, bem tirado, cremoso, cheio de cheiro. Ainda o sinto na língua.

quinta-feira, maio 22, 2008

faltam quatro dias

Lisboa, Março de 2008
fotografia de João C.


Há pequenas coisas que me deixam feliz. Esta canção, nesta versão, tão escura, tão leve, tão inocente. A luz que me espera a sul. As saudades que me vão ficar e que vou deixar a norte. Each home is where your heart is.

This Must Be The Place (Naive Melody) (Talking Heads cover) - The Arcade Fire

campo aberto

El Desierto - Lhasa De Sela

quarta-feira, maio 21, 2008

silêncio

há horas em que só resta dizer, ssshhhh. sossega. avança. não te prendas ao nada, que te suga. não cedas a esta sensação de que o ar se enche e se vaza, trazendo uma presença, projectando uma ausência. procuraste fugir-lhe, e o teu espírito transformar num deserto, num campo aberto. aceita, então, ssshhh, sossega. vê-te assim, rodeada de espaço, de terra, e aceita. que se pode construir num pântano? num buraco negro que tudo suga e pouco ou nada devolve? não está nas tuas mãos decidir do nascimento de uma supernova. sobretudo quando, de tanto se recriminar, se retorcer, se diminuir, se enxovalhar, a dor tem um cheiro velho nem nascido, nem investido do seu próprio direito de ser. por isso parece por vezes doer mais fundo. por isso parece por vezes ser apenas vácuo...

... onde já houve tanto. que nada pedia senão um pouco de luz. mas foi cortada. contas em atraso, parece.

terça-feira, maio 20, 2008

a oficial

Um bom realizador consegue arranjar finais felizes que ainda assim deixam os espectadores insatisfeitos com o desfecho do filme. Eles sabem que há qualquer coisa que não bate certo. As coisas não funcionam assim.
Rainer Werner Fassbinder




pois... diz que é hoje, apesar de termos tido casa cheia no sábado. Não deixa de ser engraçada e nova a sensação. Os nervos de estreia, que é deles? Aposto que nenhum de nós o sabe apontar. Temos um espectáculo. Mas apesar da palavra "ensaios" ter sido censurada no título, na realidade não o foi nas nossas cabeças. A isso também ajuda uma estreia difusa, disseminada, prolongada. Estreia cigana, como as bodas. E o curioso, e mesmo salvaguardando que ninguém deve ser juiz em causa própria, é que tudo se transforma com isso, mas nada se perde. Acho até que muito se ganha.


E... MERDA!


FASSBINDER-CAFÉ
a partir de O Café [Das Kaffeehaus (1969)]
de >> Rainer Werner Fassbinder
tradução >> Claudia Fischer

direcção >> Nuno M Cardoso
com a colaboração de >> Ricardo Pais
música >> VortexSoundTech
desenho de luz >> Rui Simão

interpretação >> Fernando Moreira, Joana Manuel, João Castro, Jorge Mota, José Eduardo Silva, Lígia Roque, Marta Freitas, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias e Tatsumaki (música ao vivo)

mestre de armas >> Miguel Andrade Gomes
preparação vocal e elocução >> João Henriques
assistente de encenação >> Pedro Ribeiro

produção >> TNSJ

segunda-feira, maio 19, 2008

para pensar...

... para questionar, para indignar, para falar, para espalhar, para sensibilizar. Os responsáveis por estes atentados ambientais, os abusadores de poder, devem estar a contar com o avanço da colonização de Marte para breve, com viagens de luxo acessíveis só a quem tiver cinco RAV4 a diesel, seis chevys e três rolls. É a única explicação que encontro para esta alegre caminhada para um suicídio colectivo tão facilmente evitável. Isto para nem entrar na questão moral de repressão e aniquilação de populações em nome do poder económico e geo-estratégico, para não falar de um planeta inteiro transformado em tabuleiro do Risco. Temos tudo na mão. Até a inteligência temos na mão que está fechada. O Cline é que tem razão: as you can see, these are some really fucked up monkeys.

acordar

You are carrying a masterpiece hidden within you, but you are standing in the way.



... ou, por outras palavras...

A nossa vida é a nossa deselegância, o Bobo eterno que acompanha, e por vezes diverte, a nossa íntima e divina Realeza.

cheia

Mais uma. Sempre as senti bem, mas este ano, desde que nasceu, parece contar-se em luas. Sinto-me como ela. Esburacada. E simultaneamente cheia. Seja isso também crescer.

os pilares da casa


É o percurso. É o sal e a água. São os cheiros, os pequenos sons, a caruma sob os sapatos. São os desenhos brincalhões, é a luz que os pica, os transparece, os ensombra. São os corpos com o peso da idade e de repente tão frágeis e tão estupefactos sem ele, que fazer com tal leveza? É a harmonia destemperada, rude e delicada das máquinas de costura, são as vozes delas, brilhantes, fugidias, presentes. É a Casa-Abrigo, mais um retalho de sonho com cheiro a terra costurado pelo Circolando. Até 31 de Maio, no Mosteiro de São Bento da Vitória.

domingo, maio 18, 2008

folga

Porto, Maio de 2008

enfim Placida

Demasiado tensa, é o costume, mas a cada passo menos do que no passo anterior, a cada passo mais abrigo, mais lugar aberto para que alguém habite o espaço que lhe é destinado. Ainda me parece tão pouco, e no entanto já andei tanto... I can't help it, the road just rolls out behind me. Já o sei, a partir desta noite é tudo mais fácil, mais limpo, mais fluido, mais arriscado e mais seguro. Está parido, pode nutrir-se para que continue a crescer. Até dia 25, não há metadona que me arranque do sublime ciclo vicioso. Acho mesmo que vou recordar 2008 como o feliz ano do bas-fond.

E o ano do reencontro com o M. Não sei se há olhar que eu pressinta e compreenda melhor, nos seus desvios subtis, nos seus delicados recortes, na sua obscura claridade. Voltou a ser uma nuvem. Deixo-me ir nela, e chego bem.

sábado, maio 17, 2008

power!




É pois, confusão ou não confusão, ante-estreia, estreia ou geral assistido, não há volta a dar: é hoje o dia-d. Uma coisa sei, nunca a banda sonora de um espectáculo me deu tanta pica, Mozart que me perdoe...

um rio...




Não consigo ver isto e não o postar. Só me lembro do título do artigo no Y há umas semanas: o que te faz cantar assim, Camané?



[coisa estranha, a mente; tudo aqui é Lisboa, e eu só vejo o Douro...]

aviso à navegação alfacinha



Hoje, 17 de Maio, estreiam-se em Lisboa, mais precisamente na Bomba Suicida, ao Bairro Alto, os Mimi Calkix. Nunca ouviram falar? Pois, é natural. Mas digo-vos apenas que abrigados na Fábrica da rua da Alegria têm feito belas bandas sonoras para muito do novo teatro independente do Porto; que têm uma pica que dá gosto e um requinte ruidoso; que já tirei teimas ao vivo e asseguro-vos de que vale a pena irem até à Bomba vê-los bombar.

das vontades

Estendeu-se sobre o verde, os centímetros contavam-se poucos, os escrúpulos por sua vez contavam-se em dobro. E de súbito um espaço aparentemente vazio encheu-se daquela coisa invisível e tão palpável. De uma pequenina luz imperscrutável que sabe não denunciar nunca a sua origem, vem daí?, vem daqui?, nasce no meio de dois corpos cansados sobre o verde? Pequenina luz, a vontade, pequeninos ímans que fazem de dentro vir a pulsão, a pulsação. E se me recostasse, sem querer pensar? E se deixasse o íman fazer o seu trabalho livremente e soltar os meus músculos a um descanso pressentido sobre aqueles outros que os chamavam? As vontades, o que são? Ilusões? Ou pontadas no coração?

sexta-feira, maio 16, 2008

boa noite

Há sempre quem insista em ser quadrado quando na realidade é esfera. Pode ser uma verdadeira obsessão, a linha recta.

as palavras e o acaso [?] 6.0

Faça uma oferenda, pois os traumas perturbam imenso, mas ele está a tagarelar e a rir. O trauma assusta todos aqueles que se encontram a centenas de quilómetros de distância, contudo nem uma gota de vinho sagrado cai da colher.


E o centro também está nisto

apesar da explosão de raiva—

da chuva entrar pelo telhado

e do vento abrir estrondosamente todas as portas

—no fundo seco da taça da perda
Aparece um círculo perfeito com uma pinta:

E algo em ti está tão quieto
Que dás um pulo, mas não dês
Escutas impavidamente—
Respirando e observando a cena

E enquanto a porta bate, continuas
—ou continua dentro de ti
Tão vazio como estás, a jorros
Translúcido como o teu rosto

Então vês a colher que ele segura
E o líquido vermelho-rubi nem sequer estremece...
Porque ele sabe que tudo o que lhe resta é verdade.


in I-Ching, O Livro das Mutações, Hexagrama 51—Chen

nada Placida 7.0

A perseguição implica o prazer, a ausência implica clareza, objectivo, motor. Fala de amor, sim, apenas duas vezes: com Vittoria, quando se joga a primeira pedra da irmandade; e na juke box, o momento em que eu própria não percebo, não consigo perceber, não quero perceber, sei não ser possível perceber plenamente se a máscara cai ou se coloca.Para lá desse sentimento que tudo avaliza ou de onde tudo nasce ou para onde tudo converge, o amor —ou será o Amor, ou será que o tamanho importa?—, apenas a posse, a pertença, a obstinação e a gula do jogo. Apenas? E será assim tão pouco? O vício? O vício no corpo, o vício na presença, o vício na ideia do vício. O reencontro mascara-se no género, revela-se na distância. Amam-se? Amar-se-ão. Mas no fim de contas recuperam-se como quem recupera uma agulha quando os braços quase conseguiam ficar limpos. E sabem-no.



... a partir de sábado [e sábado é um ensaio aberto, portanto, é fartar vilanagem...] e pela módica quantia de 5€, estes posts e outros retorcimentos um pouco italianos, um pouco alemães, um pouco portugueses, explicam-se a si mesmos —or so I hope—, no palco do TNSJ, ou no Café de Ridolfo, cheio das palavras de Rainer Werner Fassbinder .

Com esta estreia difusa, nem sei como pedir-vos que me mandem à merda. Olhem, até terça-feira que vem, estejam à vontade.




Convosco, Aretha Franklin e Annie Lennox. Sisters are doin' it for themselves, oh, you bet.

quinta-feira, maio 15, 2008

divergências significantes: a beleza 2.0

Os livros são objectos transcendentes, nós podemos amá-los do amor táctil que votamos aos maços de cigarros.


Caetano Veloso, Livros

divergências significantes: a beleza

Tenho pena das pessoas que acham que coisas como os pratos de sopa, ou os espelhos, ou as garrafas de Coca-Cola são feios, porque essas pessoas estão rodeadas por essas coisas diariamente, e isso deve torná-las infelizes, miseráveis.


Robert Rauschenberg, 1925-2008

bom dia

curta

Tem uns dez, onze anos e aquele ar enfiado típico da aldeia que se constrói em redor da praça. Chove miudinho, e ele, enfiado num garruço verde, está só, sobre a pista escorregadia que estende a entrada do teatro. Na mão esquerda, um saco transparente cheio de pão, aquele pão de plástico, esbranquiçado arremedo de papo-seco, que se esfarela só de existir. A mão direita chove migalhas para o chão, para os pombos que começam a agrupar-se à volta, e que ele observa um por um. Enquadrado no rectângulo sob a varanda do teatro, o momento é enorme, silencioso, a praça barulhenta evaporada nas minhas costas. Deixo-me estar um pouco, ainda tenho tempo, acendo um cigarro, sorrio. Ele sente-se subitamente observado, e além disso acabaram-se as migalhas. Deixa os pombos no seu banquete e afasta-se, encerrando a cena com o número inesperado de tão típico. Estende a mão direita, foca os olhos sob o toldo do capuz e dispara silenciosamente. Reconhece a minha presença uma última vez e vai acabar o seu recado. Da melancolia urbana ao riso da memória, lembro-me imediatamente daquela redacção de primária que li uma vez: "eu gosto muito da primavera, de ver os passarinhos a cantarem e a voarem; eu gosto muito da primavera e gosto muito de passarinhos fritos."

clube do bolinha

Bom, é que, enfim, ahan, nem sei como abordar este assunto. Se calhar é simples, basta dizer que o bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, arrotou uma posta daquelas indescritíveis, inolvidáveis, inignoráveis, iniqualáveis [sim, com "q", não é gralha]. A lei portuguesa padece de feminismo —mais propriamente de uma variante apelidada pelo próprio de "feminismo impertinente", que soa bem mais difícil de curar— e advoga, com o intuito de pôr ordem nisto com certeza, que a violência doméstica não devia ser crime público. E não está nesta notícia, mas no Público impresso de hoje estavam as pequenas pérolas que ornamentavam este belo tronco de pensamento: que a vítima procura vingança, e não justiça, que as mulheres devem poder escolher retirar a queixa [com o punho do agressor encostado à nuca, por exemplo, vão ver se elas não mudam de ideias num ápice...], que os idosos e as crianças são vítimas silenciadas [esta é particularmente boa, ou há moral ou comem todos, raça das mulheres, essa casta privilegiada].

No mesmo discurso na AR, defendeu ainda a manutenção do divórcio litigioso, para defender a parte mais fraca. Aquela, provavelmente, que fica ainda mais fraca com a porrada toda que levou... É tão claro que até cega. É tão velho, mas não morre, porrra! A mesma mente que retira peso à agressão, concentra toda a sua amável solidariedade na pena, na protecção, na oficialização de uma dependência. Não é preciso proteger as mulheres de levarem porrada, é preciso é protegê-las de ficarem sozinhas, coitadas.


Este fim de parágrafo lembra-me o que o meu mano David costuma dizer quando não há mais nada a dizer: "vírgula, coitado".

quarta-feira, maio 14, 2008

as palavras e o acaso 5.0

Que grande medo temos, tu e eu,
Seu boquinha de raia, amigo meu!

Oh, como se esfarela este tabaco,
Quebra-nozes compincha, meu velhaco!

E eu podia ter assobiado a vida,
A bolinho de noz acompanhada,

Pois, mas não pode ser nada...



Ossip Mandelstam, Outubro de 1930, tradução de Nina Guerra

paz, manos



Estou numa de harmonia, pronto. Qualquer relação entre o meu estado e duas aulas de ioga no mesmo dia, boas conversas e um ensaio curtido é, obviamente, coincidência.

[apresento as minhas desculpas pela lamentável e indesculpável falha deste post; sei perfeitamente que versão é esta, mas não me lembro nem a ferros e o cd ficou em Lisboa, claro; é uma das minhas preferidas e a única que possuo —para além das invulgarmente felizes memórias próprias, emocionais e físicas, desta música; deu-me umas saudades de cantar isto —aliás, tirando um derrapanço aqui e ali, ainda está tudo na ponta da língua, eu, primeiro soprano, jajajajaja, só mesmo a 415 e no Japão —, bom, mas umas saudades... e de vocês, miúdas, trutas, bué bué bué, ménes].

é bom quando funciona




... não é?

nada Placida 6.0

Tinha "Ensaio" no nome, mas teve de cair, diz que os estates do autor não permitem. É um espectáculo, portanto, ou sê-lo-á, a partir de sábado. Mas hoje —ontem—, que a nossa linda casinha fez 210 anos (realmente, ó MPR, o 13 de Maio sempre é uma data importante, não há é muita gente a saber porquê...) , o ensaio foi aberto a quem quisesse. Ainda está tudo por afinar, há soluções por encontrar, marcações bastante livres e algumas absolutamente por definir, a mesa de encenação no meio da plateia e o encenador apoiado na boca de cena e cruzando o palco sempre que lhe dá na real gana. A presença do público dá outro lastro a quem está no palco, sempre, é facto provado, comprovado, re-comprovado e até quando é reprovado, é-o em experiências que não existiriam se não partissem desse dado adquirido. E instalou-se um daqueles tapetes de energia que transportam o trabalho numa fluidez, num caudal que nos refresca a todos e liquidamente nos liga e sintoniza. Fiquei mesmo com pena que não possamos, como estava previsto, passar três horas e meia num acto, com o M a vir segredar indicações ao ouvido de cada um, com as controladas piadas privadas, com os actores a saírem e a entrarem consecutivamente das suas próprias peles para as peles alheias que tomam para si, a serem desafiados a percorrer outro caminho e a aceitarem os riscos, a fazerem pela primeira vez hoje, como o fizeram ontem e há um mês na sala que o público não conhece.

Não imaginam as poucas pessoas que se espalhavam pela tribuna e os assistentes de sala que se puderam sentar na plateia sem restrições que só eles, apenas eles viram o espectáculo como ele foi concebido. Para mim, já estreámos.

terça-feira, maio 13, 2008

ponto zero

... which is also a number.


um herói, à mesura da sua estatura

Não foi há muito tempo que tive conhecimento da história de Irena Sandler, a enfermeira polaca que salvou milhares de crianças do inferno do gueto de Varsóvia, entre 1940 e 1943, guardando a identidade judaica de cada uma em mortalhas escritas e enterradas em garrafas no jardim para que o futuro as pudesse desenterrar. Morreu ontem, com 98 anos, e praticamente incógnita. Troféus da sua acção? Uma cadeira de rodas, mercê das fracturas infligidas em interrogatório pela Gestapo, duas mil e quinhentas vidas afastadas do caminho da "solução final" e um brilho deslumbrante no olhar quase centenário. Todo explicado numa simples frase que liminarmente prova que os heróis não existem:

Nós, aqueles que estávamos a salvar as crianças, não somos uma espécie de heróis. Na verdade esse termo irrita-me imenso. O oposto é verdade. Continuo a ter remorsos por ter feito tão pouco.

Irena Sendler, 1910-2008

lost in drawers

Pronto, já chega, ok? Já sei que perdi um concerto dos diabos, só que embora estivesse em Lx no domingo, as minhas gavetas eram outras, por obrigações contratuais. Mas não faz mal, o percurso de uma banda como esta é um slow show, e há-de vir parar-me à porta novamente, mais cedo ou mais tarde...

confissões de uma automobilista em ressaca de mais de seis meses



Não me faz falta ao quotidiano, em nenhuma das duas cidades dispenso a limpeza da electricidade para me transportar. Mas desta vez tive de regressar ao Porto com o volante nas mãos, e é quando me sento atrás da roda que me lembro do prazer que é ter nas mãos uma máquina que obedece aos mínimos impulsos do corpo e do cérebro. Ui, isto é esquisito, estou a falar da condução quase como se fosse uma experiência transcendental, mas não são os prazeres viagens em si mesmos? Pouco trânsito, a estrada aberta, e a minha latinha, espécie de bicicleta de quatro rodas, a portar-se à altura. Este foi um daqueles dias...

maio 13

O meu mais velho, Abílio Yang Freud de sua graça, Billy pós amigos, faz hoje sete anos. Sendo que partilhamos território desde que armei o meu primeiro barraco, faz portanto sete anos que estou fora do ovo, e acho que só agora, sete anos passados, deixei de trincar amiúde os restos de casca que teimavam em vir aos dentes. Sete. Número omnipresente. Número luminoso.

Porto, Fev 2006



ah... resta dizer que fui enganada. Quando era pirralho era todo branco com uma manchinha escura no focinho e um leve véu de cinza na cauda e nas orelhas. A bem dizer, parecia uma ratazana branca. Sai-me afinal um lorde veneziano, caprichoso como só visto, siamês bastardo armado em príncipe da Dinamarca. E doce como as ameixas do pomar de casa... baaauuu.

olha...

Há três dias passaram dois anos. E o que mais me espanta neste blog errático, é que ao fim de dois anos de vagabundagem continua a haver quem venha cá... não piam, é verdade, mas espreitam, que eu sei...

segunda-feira, maio 12, 2008

the wheel is turning, mein Herr

the road is open, mein Herr, du kennst mich wohl, mein Herr, und vorbei!

domingo, maio 11, 2008

ponto



... and life flows on within you and without you.

vírgula azul



... but I do know that I'm walking where? I don't know, just away...

vírgula vermelha

I don't understand about complementary colors   And what they say   Side by side, they both get bright   Together, they both get gray   But he's been pretty much yellow   And I've been kind of blue   But all I can see is red, red, red, red, red now   What am I gonna do
I don't understand about diamonds   And why men buy them   What's so impressive about a diamond   Except the mining   But it's dangerous work   Trying to get to you, too   And I think, if I didn't have to kill, kill, kill, kill   Kill myself doing it   Maybe I wouldn't think so much of you.
I've been watching all the time   And I still can't find the tack   But what I want to know is   Is it ok; is it just fine   Or is it my fault; is it my lack
I don't understand about   The wether outside   Or the harmony in a tune   Or why somebody lied   But there's a solace, a bit in submitting   To the fitfully, cryptically true   What's happened has happened   What's coming is already on it's way   With a role for me to play   And I don't understand; I'll never understand   But I'll try to understand   There's nothing else I can do.



numa frase, todo o cinema

... ou Porque não concordo com as críticas que tenho ouvido ao último Alain Resnais.


Pessoas comuns têm coisas a dizer e quando o dizem com a luz certa e no ângulo certo, é insuperável. O cinema existe para isso.


Pedro Costa, à beira de ser o primeiro artista português a quem a Tate Modern dedica uma restrospectiva

nada Placida 5.0

Não é um touro. Não acomete. Circunda. Circula, como uma corrente de ar em sucessão de desvios até caçar o pulmão procurado. Observa as pedras no tabuleiro, e joga. Por prazer, sem título de dívida e sem garantia. Correu-me mal, o Poker, mas acho que começo a perceber este bluff. E ao invés de pesar, alivia. Trabalho giro. Às vezes parece um boomerang.

sábado, maio 10, 2008

valsa

Era mais lenta, tão mais lenta esta valsa. Sinto-a correr em meu redor, tento reconhecê-la neste violino liso e aquoso e não consigo. Era mais lenta, raios, o próprio filme era em câmara lenta e agora voa à minha frente. O que falhou, o projector? O meu cérebro de teima? Será que adormeci? Talvez tenha sido apenas isso. Adormeci por um instante. E a valsa perdeu a pulsação, perdeu o chão. Voa eufórica, no salão onde não cabe até embater contra uma parede e se terminar abruptamente. Tento chamá-la, convencê-la, calma, não era esse o tempo, não o comas que o vomitarás, ternária ilusão, abranda, dois três, sshhh, dois três. Terna ilusão. Não era este o tempo, dois três, um dois três... um... e dois... e três...

sexta-feira, maio 09, 2008

porque isto anda tudo ligado — adenda

E pronto, depois há os homens que estão para lá do quase, como o meu querido Carlos Fiolhais, que hoje no Público se passeia um bocadinho pelos jogos de poder das praxes académicas. O artigo online é só para assinantes, por isso aqui fica a chave de ouro. Ok, fico mais tranquila por perceber que esta sensação desagradável que sinto ao ver bibelots arrumadinhos nas suas prateleiras não é doença minha. E por confirmar que estar para lá do quase não é incompatível com o género masculino, apenas com alguma pedra dura das mentalidades.


E não posso aprovar — até porque é inconstitucional — a discriminação de que as mulheres são vítimas nos códigos da praxe. O dux veteranorum de Coimbra anunciou que elas não podiam usar colete no traje académico, ficando essa peça reservada aos homens. Por seu lado, e na mesma linha, o dux do Porto defendeu que os fados e as serenatas são coisas de homens. Segundo ele, a interpretação do fado académico pelas mulheres seria inverter os papéis do macho e da fêmea; se as fêmeas fossem fazer serenatas aos homens aonde é que íamos chegar? Parece que há mulheres que aceitam este tipo de restrições. Eu, se fosse mulher, revoltava-me. Mas não sou e revolto-me na mesma.

ach, ich fühls...

Está quase. Estou quase a começar o percurso. Sinto-me à beira de entrar num túnel maçónico, não sei se terá chamas, se será escuro, se só tem uma morrinha húmida a descer pelas paredes. A cada dia que passa, menos um dia para ser irreversível, para subir ao topo do escorrega e berrar a plenos pulmões: aí vou eu! Como ainda por cima o escorrega me mete algum medo, tenho de respirar, fechar os olhos e confiar que vou passar inteira e chegar ao outro lado sem grandes mossas, ao fim das chamas, à luz do sol. Ach, carago, mein Herr!... Que comece de uma vez, antes que eu desista à última. Até porque o meu nariz agradece que a rinite volte a ser alegremente alérgica, em vez de se armar ao psicossomático.

quinta-feira, maio 08, 2008

as palavras e o acaso 4.0



I bet your fortressed face
Belied your fort of lace
It is by the grace of me
You never learned what I could see

dois em um, porque isto anda tudo ligado

O primeiro ponto — um organismo com o franco nome de Instituto de Política Familiar apresentou gloriosamente à Europa um estudo extraordinário, que se resume assim:

"O aborto, juntamente com o cancro, é a primeira causa de mortalidade na Europa", refere o documento acrescentando que cada dia deixam de nascer na Europa 3199 crianças.

Foi elaborado por uma equipa de psicólogos, demógrafos, sexólogos e peritos em conciliação entre trabalho e família, diz a notícia, todos mortos há mais de cinquenta anos, adivinho eu. Mal posso esperar para saber quais são os números, certamente horrendos, da mortalidade resultante da masturbação masculina, assim como do planeamento familiar. Aguardo o tomo seguinte de tão politicamente iluminado estudo. Afinal, a Europa está a envelhecer, precisamos de massa de trabalho senhores. Se as mulheres se safam ao seu dever sagrado de parideiras estamos tramados, temos de deixar entrar mais uns quantos de cor esquisita para nos construirem os barracos. O Einstein é que sabia: só há duas coisas infinitas, o Universo e a estupidez humana; e quanto ao primeiro, ainda há lugar para dúvidas.


O segundo ponto, o Elogio da mulher quase bonita... enfim, o título explica-se a si próprio, mas a conclusão, avalizada apenas pelo próprio Pedro Lomba e não por um desconhecido exército de psicólogos, sexólogos e peritos em educação para a vida doméstica —ai não, espera, peritos em conciliação entre trabalho e família (por parte delas, presumo...)— a conclusão, dizia eu, é belíssima:

"Há um tipo de mulher que anda por aí nas avenidas, vejo-a agora do sítio onde escrevo, que é assim mesmo: quase bonita. Está tão perto de ser bonita que nos confunde. A beleza tem muitas formas. Há uma beleza tirânica e autoconsciente que eu tento evitar. A mulher que sabe que é bonita é uma mulher que já chegou, é uma mulher engravatada que já faz parte do "sistema", que aderiu ao "centrão". Não lhe sobram dúvidas nem inquietações. Ora, eu acredito que o ser humano deve fugir da confiança excessiva para não se transformar num mísero deslumbrado. Deve desconfiar de si mesmo, do que é, do que quer ser. A mulher demasiado segura da sua beleza não possui esta hesitação, este entendimento paradoxal com o mundo. Toda a mulher conscientemente, arrogantemente bonita não precisa do mundo para nada. Basta-se a si própria, enquanto passeia nas avenidas recebendo falsos juramentos e falsas venerações.

Eu só acredito, por isso, na mulher quase bonita. Acredito que o nosso consolo só pode vir da mulher que está quase, que vai um dia estar mas ainda não sabe, que vive na secreta ilusão de vir a ser. A mulher quase bonita merece a nossa crescente, indisputável admiração. Hoje eu tinha de escrever isto."



Lembra-me aquele sketch do primeiro episódio d'Os Contemporâneos, em que um jurado de uma surreal avaliação descrevia as professoras como "aquela que tem umas grandes mamas" ou "aquela boa, muita boa, és uma deusa!". Lembra-me também um ex-colega de trabalho que há um ano, mais coisa menos coisa, me pergunta pelo elenco de um espectáculo em ensaios; quando chego às mulheres, "bom, está a F.", "ah, ela é boa", atalha o latino macho em défice, e eu, já a sentir qualquer coisa desagradável no tom de voz "é, é muito boa actriz". Resposta esperada, "ah, se é boa actriz não sei, mas é boa." Numa mesma edição diária, os estereótipos em todo o seu esplendor: a incubadora de amor, o bibelot decorativo. É bonito. Só apetece dizer que o que vale a certos cronistas é algumas mulheres terem um fraquinho por homens quase inteligentes. Deve ser o instinto maternal.

nada Placida 4.0

Há coisas que se mostram melhor se escondidas pela transparência de um véu. Há reacções humanas das quais Pavlov não desdenharia. A sugestão é bem mais rica do que a exposição.

quarta-feira, maio 07, 2008

too long, and oh so boring...

... and never finished.

as palavras e o acaso 3.0

A história deste romance resume-se no facto de que a história que aí se devia contar não é contada.

Robert Musil, esboço de prefácio a O homem sem qualidades, 1932, trad. de João Barrento

dói-me a cabeça e o universo...



Eu adoro a primavera, juro. Mas com o nariz a latejar bem que me apetece cantar: If this is paradise, I wish I had a lawnmower!...

segunda-feira, maio 05, 2008

mas quem é que gosta de chihuahuas?...




... e eu, oficialmente, estou a trabalhar. boufff... preguiiiiiiiça.

as palavras e o acaso 2.0

É húmido e sonoro o ar sombrio;
Não há medo no bosque apaziguante.
A leve cruz dos passeios sozinho
Submisso carrego novamente.

De novo para a terra em letargia
A queixa voará, qual pato bravo,
Participo duma vida sombria
Onde todos estão sós lado a lado!

Um tiro. Sobre o lago adormecido
Pesadas se tornam as asas dos patos.
Pela sua vida dupla, reflectida,
Os pinheiros tornam-se assombrados.

Em reflexo estranho o céu brumoso —
A turva dor universal, ali —
Permite-me também ser nebuloso,
Permite-me que não te ame, a ti.


Ossip Mandelstam, 1912, 1935, tradução de Nina Guerra

água fresca...



... para um dia de sol.

Lisboa, Março de 2008


E a minha casa deve, neste momento, estar mais ou menos assim... ai.

domingo, maio 04, 2008

adenda

Assim como há momentos quase-fantasma que valem uma vida inteira.

il neige dans mon coeur

Começa subtil, desvelando-se muito lentamente num humor cansado, cortante e inocente em simultâneo; numa câmara sossegadinha, tocando ao de leve cada retalho a coser, cada rosto a oferecer. Neva lá fora, e neva cá dentro, os únicos malabarismos estão nas orgânicas sobreposições que em algumas sequências fazem a neve parecer tombar dos tectos das divisões. Praticamente não vemos o exterior, mas as personagens estão sempre a entrar em algum lado, ou a sair da rua, e há neve nos casacos, nos gorros, nos cabelos. E no exterior filmado a partir do interior, com um vidro de permeio, o corpo não permanece o suficiente para que haja neve nos seus ombros quando a neve realmente lhe cai em cima. Mas depois da suave abertura, começam as surpresas, como se até ali estivéssemos apenas a receber uma preparação breve para a viagem. A partir do primeiro plano picado —tectos que desaparecem, apartamentos em obras que se tornam casas de bonecas vistas de cima por nós, gigantes abelhudos— percebemos que há qualquer coisa que muda, que flui e lentamente transforma a realidade. Sem sobressaltos, a câmara solta-se progressivamente e dança com as cenas, na exacta medida em que as vidas se cruzam na neve, antes de por fim se esboroarem novamente e voltarem ao ponto em que estavam ou quase. Há um quarto de doente do qual só se vê os pés da cama, excepto quando fica vazio e se nos apresenta magnificamente em verdadeira sequência de slides. Há o rosto de palhaço alegremente triste de Sabine Azéma, entre o fogo e o gelo, a beatice e a quase inocente perversão, há os olhos melancólicos de Pierre Arditi, há a beleza escura e rica de Laura Morante. Há um olho cheio de amor e outro cheio de sarcasmo. E planos de uma beleza estrondosa. Quando menos espero, surge a imagem que traduz tudo o que estou a sentir. Por um fugidio instante, duas mãos na neve cortando o ambiente de uma infinita frieza azul a que rapidamente se regressa. E o coração dá um pulo e os olhos respondem húmidos, certos de que, mesmo no meio de tanta beleza, aquele momento quase fantasma valeria um filme inteiro.


as palavras e o acaso

Há dias em que as palavras parecem vir ter connosco, como que a sublinhar-nos o pensamento. A mudança é a única coisa permanente. Mas mesmo assim, é bem mais lenta do que a aceleração supérflua do tempo nos pode fazer pensar. A palavra —ou antes, a pergunta, assustadora e pertinente ainda, trinta e seis anos depois— às Três Marias.


O que podemos com elas [as palavras] em nosso favor e de mulher em mulher nos dizermos e contarmos do domínio que ainda somos, despojo hoje de guerreiros que se fingem companheiros em ajudada luta, mas que apenas pretendem montar-nos e serem cavaleiros de Marianas de outros cativeiros presas e monjas de diferentes conventos, sem disso se darem conta?

Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, in Novas Cartas Portuguesas, 1972



Podemos falar, pelo menos. Podemos recusar negarmo-nos e negar o que nos chega, porque o que nos chega é mais feio do que gostaríamos, mais pequeno, mais tristemente cavernoso. Há confortos de um desconforto insuportável. Prefiro o desconforto da realidade.