quarta-feira, abril 30, 2008

minibar

É da idade? Não, não me parece. Foi ontem que no meio de infindáveis digressões com orquestra me apercebi de que já não ficava feliz por voltar a Lisboa, que tinha vontade de não voltar. Desde essa sensação — foi ontem, ontem, mais precisamente há seis ou sete anos, ontem —, desde então me convenci de que era intrinsecamente móvel, saltibanco sem remédio. Hoje estou a chegar a um fim — ou a uma pausa — nos quatro anos de relação intensa com o Porto. Quatro anos em que perdi o pé e o recuperei, em que muito provavelmente o pé que encontrei nem era o primeiro que perdi, mas outro, com os dedos mais abertos, mais flexíveis, mais sólidos. Um pé que flecte e estica e aguenta as pontas, até fazer sangue se for preciso. Mas sangra. Quatro anos em que me pareceu perder a raiz, em que viver no norte ou no sul me parecia quase indiferente, tantos são os lares que fui construindo entre a Batalha e o Pinheiro Manso. Permanente impermanência. Amo o Porto sei-o, e não é a família que me falta, pois no Porto a tenho também, tão próxima e tão fiável e tão minha. Mas a luz...

Olho para os riscos de sol que me tingem as paredes, as zonas de sombra brincando com as persianas e os móveis. Brincando com os olhos de três gatos invariavelmente cabisbaixos quando fecho a mala, dobro o fouton e a partida é clara e indesmentível. Vir a casa rasga-me. E quanto menos falta para o regresso, para poder desencaixotar finalmente o resto da minha vida, mais me rasga. Suspiro. Vai passar. Vou passar. Estou sempre de passagem. Provavelmente tão cedo não terei outra vida, nem sei se a quero. Mas sei que para andar feliz pelo mato, preciso primeiro de voltar a tomar conta do meu território, da minha toca. Agora uns saborosos meses para o fazer, e logo o bicho ficará pronto para o constante teletransporte.

Ontem cruzei-me com mais uma cara que não via há anos. Então, quando voltas para cá? Breve, muito em breve, respondo, esta cidade, percebo agora, faz-me uma falta dos diabos. É da luz, vem do outro lado, acto contínuo, é esta luz. Eu sorrio, surpreendida com a falta de surpresa que a afirmação me causa — já perdi a conta às vezes em que ouvi esta frase durante esta semana — e penso em Roma e na loucura que é sentir que aquela é a única outra cidade a que poderia também chamar minha. É, é a luz. Só pode ser.


terça-feira, abril 29, 2008

três esconjuros

Esconjuro o bicho do ciúme, escuro, negro, que tenta apanhar-me fragilizada e tomar conta do território. És uma mascote, cão raivoso, não és o chefe da matilha, eu te esconjuro.

Esconjuro o bicho da posse, que não permito que reja mares que o ultrapassam na sua beleza, na sua profundidade, no seu balanço hipnótico, nas suas águas furiosas. Afoga-te nelas!

Esconjuro o bicho do despeito, devorador das orlas das emoções generosas que só precisam de si mesmas para se regenerarem.

Quando a saudade aperta, eu sinto saudade. O amor, esse, não se defende, resiste apenas porque é verdade. Não te esconjuro, doce animal, pequeno e assustado. Recolho-te e afago-te, lambo-te as feridas. Estou viva.

segunda-feira, abril 28, 2008

tempo?

Cheguei a casa no sábado, tenho andado a trabalhar um bocadinho, mas sobretudo a laurear e a matar saudades. Ontem assustei-me quando, já na cozinha, percebi que não era meio-dia como eu pensava, mas uma e meia. Já no sábado tinha sentido uma estranha flutuação nas horas do dia, mas não conseguia perceber porquê. Hoje era a primeira manhã em que tinha horas para estar em algum lado e felizmente decidi acordar mais cedo do que era preciso, para adiantar coisas em casa. Ouvi o Puto sair às sete e meia da matina, estava eu a acordar, e pensei, "livra, coitada da miúda, hoje começa cedo". Só quando cheguei à cozinha percebi que tinha tempo apenas para as tarefas indispensáveis e para sair disparada. A hora mudou enquanto estive no Porto. O meu quarto estava uma hora atrasado. Mas o que me soube mesmo bem foi ter levado dois dias a aperceber-me disso.


Lisboa, Janeiro de 2007
fotografia de Rodrigues

back in black

Sombra, aka "o gato mais lindo do mundo"
Lisboa, 28 de Abril de 2008

tantos sem casa, tanta casa sem



A minha farda tem dois três quatro botões cinco botões seis sete e oito oito botões nove botões dez onze doze botões treze botões a minha farda tem catorze quinze botões dezasseis botões dezoito botões vinte botões vinte e um botões trinta botões a minha farda tem trinta quarenta botões renta botões quarenta e cinco botões cinco botões sessenta mais dez botões dez botões dez botões dez botões dez botões a minha farda tem cinquenta mil botões mil botões...

Príncipe Real, 28 de Abril de 2008

bem sei que de fora é fácil falar...

... mas ao ouvir uma mãe relativamente jovem, num eléctrico praticamente vazio, respingar para uma catraia de quatro ou cinco anos que está longe de ser hiper-activa, "ó Mariana, pára de te mexer!", juro que tive de me controlar para não atalhar: ó senhora, desligue-a, ou no manual de instruções não vinha indicado o compartimento das pilhas? Que maçada, esta mania de viver que os putos têm...

domingo, abril 27, 2008

e o mais triste é que eu continuo a ver esta treta

Telejornal da 2. Diz que aconteceu, como todos os anos, o jantar dos correspondentes de imprensa na Casa Branca, com a presença da estrela Bushinho. Diz que fez piadas, sobre o casamento da filha e sobre os candidatos a seu sucessor. Diz que sim, que é, por ser o presidente dos EUA, o presidente do mundo globalizado [e não é por não sermos seus eleitores que não lhe sentimos os efeitos, grande parte dos americanos também não o elegeu e teve de o gramar]. Só que continuo sem perceber por que diabo é isto notícia durante uns largos minutos num serviço noticioso português. Mas devo ser eu que sou do contra...

mitos vivos em sessão contínua 3.0

Foi a minha mais que provável única noite no Indie. Música, música, rostos, sonhos. Neste último ano tenho reencontrado no cinema a música que me constrói: a Joy Division, Dylan, Scott Walker, Patti Smith. E encontro uma poesia muito especial nestes filmes, uma poesia não-reverente, sem passadeiras vermelhas, sem salamaleques. Poesia a sério, em redor de poetas a sério. Jesus died for somebody's sins, but not theirs...


mitos vivos em sessão contínua 2.0

Cinquenta anos não são nada, numa mulher que traz consigo Nova Iorque, Mapplethorpe, Dylan, a grande depressão, Rimbaud e Blake, o amor e a perda, a criação e o protesto e umas botas de caminhar preparadas para milhas e milhas e milhas. No doubt, she smells like teen spirit.

mitos vivos em sessão contínua

O homem do século trinta, a voz das profundezas do tempo. Ou de como não é azeiteiro quem quer, mas quem pode. E o que eu gosto de azeite refinado...




O que sai, ao longo dos lentos anos, deste bicho escondido atrás de um boné de baseball, é tão verdadeiro, é tão luminosamente obscuro, que até me esqueço que ele teve alguma coisa a ver com esse Pola X que abomino. Aliás, devo-lhe, no que toca a esse filme insuportável, os únicos momentos em que não se ouviam os diálogos carregados de cagança e esvaziados de significado. Abençoada a atormentada música industrial, que se sobrepunha ao Dépardieu júnior lamentando-se pelos cantos.

O inconsciente é uma fronteira perigosa. É bom passear por lá, mas sem nos atolarmos. É doce ouvir a sua voz, no timbre obscuro de um suicidado pretty boy adolescente transformado em totem dos nossos dias.

o livro

Na última semana ouvi umas quantas vozes do norte suspirarem pela luz de Lisboa, o que até achei algo descortês para os céus que os agora tardios crepúsculos do Porto nos têm oferecido. Mas sorrio à descortesia. Basta chegar ao Ribatejo, e esta transparência impudica começa a insinuar-se calma. Quente mesmo quando é fria. Nesta altura apresenta-se primeiro o porteiro de farda vermelha e libré, pequenas margaridas entrelaçando o seu amarelo vivo nas papoilas que berram vermelho ao longo do corredor do Tejo. Calam-se as papoilas quando o Stephen Merritt começa o seu círculo de leitura ao meu ouvido...

The book of love is long and boring
No one can lift the damn thing
It's full of charts and facts and figures
And instructions for dancing but

I...
I love it when you read to me


Chegar ao oriente tem para mim o sabor de uma antecâmara. Não é ainda a minha Lisboa, mas é ela que se anuncia. O comboio fica praticamente vazio e eu posso sussurrar a música que me trespassa sem me importar com olhares de estranheza. Bom, sobrou um casal de turistas, mas a malta gosta sempre de apanhar uns freaks indígenas, ou não fossem também assim feitas as memórias das viagens...

The book of love has music in it
In fact that's where music comes from
Some of it is just transcendental
Some of it is just really dumb but

I...
I love it when you sing to me


No cais, enquanto não avançamos para a terminal Apolónia, um casal aproxima-se do elevador. Ele é baixo e ligeiramente barrigudo, os braços curtos abandonados no ar, como que cheios de indecisões por tomar, o cabelo grisalho e ralo na nuca. Mais abaixo, ela, não porque seja mais baixa, mas porque por alguma razão se desloca sentada, sobre rodas. O cabelo grisalho é nela farto. Pressionam o botão e esperam. E o Merritt canta...

The book of love is long and boring
And written very long ago
It's full of flowers and heart-shaped boxes
And things we're all too young to know but

I...
I love it when you give me things and
You...
You ought to give me wedding rings


Dão as mãos. A tempo, no downbeat da canção. Não vi se tinham nos dedos os tais anéis que cantava o meu crooner pessoal, mas as mãos, essas, descansaram uma na outra. O elevador chegou. E o comboio partiu, mastigando o último pedaço da viagem.

sábado, abril 26, 2008

jeune femme vivante dans un train

Está sol. Os comboios têm a pulsação da vida. E há canções que têm precisamente o passo leve de um comboio num dia de sol.

|fim-de-semana|

Lisboa, Março de 2008

à manivela




... am I still convinceable? ... Maybe if I drop a coin, I'll get the answer. Or maybe not. If so, I'll just ask again. Come on, smile, oh pretty coin operated boy.

déjà vu

passa gato, passa, fecha a moldura da casa. já te vi ontem, passavas e ronronaste-me aos sapatos, pediste-me colo. olhei-te cá de cima, mas que poder têm os gatos negros, o de nos fazer sentir que temos os pés no tecto e quanto mais altos mais abaixo, a gravidade a pesar na cabeça, o gato lá em cima, no chão, pequenino, quase cria. quase cria, quase inteiro. humedeceram-se-me os olhos e sorri-te. desce por mim acima, então, tenho a mão aberta para o teu nariz húmido, para as tuas orelhas de antena, para a tua língua rugosa. vê, toda a zona frágil exposta, os dedos distendidos, podes confiar. e começaste o teu alpinismo invertido, de garras recolhidas, salvo umas poucas distracções não contabilizadas, não te recriminarei por te desequilibrares numa tal escalada e aceito os arranhões. no fim do caminho mal te senti, ficou apenas um milímetro a mais na linha da vida, temporariamente inchado no seu ponto de sangue. e no entanto, ronronaste-me aos sapatos, podia jurar que não foi um sopro de guerra, dissimulado felino, nem um miado de desprezo, foi o motor que te une a garganta à barriga rasgada de branco.

e lá estamos a repetir a nossa dança, como se fosse a primeira vez. mas não é. como, estou certa, os efeitos não serão idênticos. é um déjà vu, mas com um desvio significante.

sexta-feira, abril 25, 2008

às vezes acorda-se com uma música na cabeça...

...e por alguma razão ela bate certo. Com o dia, com a luz, com a voz. Você sabe como é que é...




Imperdível, também, a magnífica e solitária versão ao vivo, cheia de pica e com o homem a cantar bem como nunca o vi.

bom 25, que no estado em que isto anda nem me apetece dizer mais nada...

Fala a sério e fala no gozo
Fá-la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância - muito e devagar.

Alexandre O'Neill


... porque, 34 anos depois, ainda há poesia na rua.

quinta-feira, abril 24, 2008

out of the blue

You are more self-protective than most people realize... quem não nos conhece realmente pode acertar em cheio com uma desarmante facilidade.


Mas os contrários que se juntam logo me sussurram que essa self-protectiveness não é mais do que um lento suicídio da alma, bem armado, de elmo e couraça, bravo guerreiro sobrevivente a todas as batalhas. Sempre vital, e sempre morto. Às vezes, aprender a estar vivo leva uns anos. E não pouca coragem.

quarta-feira, abril 23, 2008

abre os olhos

É bem melhor acordar sem saber porquê, no fim da madrugada a ignorância é uma bênção que a memória do sonho esquarteja cruelmente. Volto-me dentro de mim mesma, não me revolto, mas reviro-me, mudo os pontos de fuga, mudo os prismas, mudo as perspectivas, reviro-me e volto-me e continuo turva. Sinto tudo, compreendo nada, talvez nem seja sensação nova, talvez nunca o decorrer dos dias tenha passado por mim de outra maneira. Não quero disparar. Não te quero matar para não fugires e quero parar de fugir, mas não sei como, diz-me como, peço-te. Nem ajuda sei pedir.

Talvez nunca o decorrer dos dias tenha passado por mim de outra maneira. Talvez nunca o amor... talvez sempre.

segunda-feira, abril 21, 2008

mais maçãs

porque gosto do cheiro. porque a boca fica fresca no depois. porque não há nada mais difícil para uma secção rítmica do que manter um tempo desta lentidão, embalando no piano um mar indeciso e melancólico. a ausência de baterista deve ajudar, no balanço frágil da beleza, a pancada pode ser veneno. eu, como todo o bom marinheiro, sei-o bem.



porque a voz límpida e rouca simultaneamente só pode ser a de uma mulher madura ou de um rapaz púbere. e porque a canoa do texto baloiça triste, entre o amor e a dor, sob o arco celeste de duas luas amarelas. cheias.


I have too been playing with fifty-two cards
- Just cause I play so far from my vest
Whatever I've got, I've got no reason to guard
What could I do, but spend my best

O' Sailor, why'd you do it...

domingo, abril 20, 2008

elogio de eustáquio

há noites assim

em que por detrás das nuvens os olhos adivinham um forte luar
—mas não tão forte que as rompa, não tão amarelo que as coma.

em que a pele não sabe se enrijece
—se arrepia.

em que no ar nada corre
—só farejo a distância.

em que a língua se enrola e se avoluma na boca,
como se nada houvesse para dizer
—ou porque há tanto.

perguntaste, mas a resposta...
não a sei.

e porque há tanto, não falo
—escuto.

sábado, abril 19, 2008

nada Placida 3.0

Começa a assustar-me, esta sequência bélica de descobertas. Sempre fui doida por cavalos, agora descubro a estranha adrenalina de disparar um revólver e exploro a arte de bem interrogar um indefeso arremedo de cóbói. Estou aqui estou a alistar-me numa cena qualquer...






...

E no meio disto tudo, sigo sendo pacifista, o que para mim é tanto uma questão moral como de inteligência. Lá está o meu tao, espreitando sorridente. E logo hoje o jornal traz uma série de pérolas de Agostinho da Silva. Entre as quais, esta:

Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.


... ora bem. Pela metade? Não vale a pena...

nada Placida 2.0

Conclusão do ensaio de hoje: torturar uma pessoa faz um calor dos diabos.

gabriel aos oito anos — para o K. ... e para mim

(...)
Um intervalo, mais um. Porque apetece parar e beber um copo quando se fala de amor, fumar um cigarro, beijar alguém, prazeres mundanos que as regras contrariam e que tanta vez as regras matam, de morte assassinada. Palavra maldita quando cheia dos odores que a definem, quando alagada dos líquidos etílicos que a recomendam e afastam, as leis, sempre as leis, as regras, as instruções, os caminhos, os medos, tantos medos. Talvez chegar-me ao balcão, pedir uma cerveja e uma requisição, olhe, queria um Modelo A24 para requerer o amor ou dispensá-lo definitivamente, obrigada, onde é a tesouraria? Objectos versáteis, os balcões, como as mesas, que são camas, ou não. E por detrás de todas as garrafas, o espelho, para além das costas do barman também o meu rosto reflectido e os dos amigos que me acompanham, o espelho lembra-mo, que eles me acompanham hoje e eu a eles, amanhã talvez já não me lembre se eram eles ou outros, mas hoje são importantes, amanhã que importa?

E aqui estou, aqui me mantenho, petrificada, paralisada, aterrada. Não me mexo, tenho medo de me mexer e destruir algo que não tenho, de perder o que me mantém viva ainda que não seja meu. É um medo que só o amor empresta, medo de se perder o que não se tem. Medo de invadir e vontade ser invadido. Mas só se pode falar de vontade se forem possíveis as opções... Será novamente uma lei? Ou estará sempre presente a vontade, mesmo quando cremos que não, quando gostamos de sentir que algo demasido forte e superior guia os nossos passos e nos empurra para o pólo que nos magnetiza e paralisa, leis da Física ou de outra coisa qualquer? Desculpe, qual era a pergunta, acho que me perdi. Mais um intervalo




Intenções de contar uma história? Sim, talvez. Mas se as almas se confundem tanto, como defini-las e nomeá-las, como honrar a existência real que definitivamente têm e que definitivamente as enclausura, as enquadra? Tirar-lhes a realidade dando-lhes um nome. Não é disso que se trata? Quando baptizo um filho faço-o para lhe dar realidade, existência jurídica, social, o que for, para além daquela que tem na minha alma, no meu coração, no meu corpo ainda e sempre. Quando baptizo uma personagem... Bem, uma personagem baptiza-se para matar, para expulsar das entranhas, para irrealizar na prática o que se realiza todos os dias. Falar de mim sem falar de mim, ser pessoal e ser universal, só megalomanias, caramba, porque não nos contentamos em ser o que somos, ainda que isso seja apenas o bobo eterno que acompanha, e por vezes diverte, a nossa íntima e divina realeza?

Chamo-lhe Gabriel. E pronto. Cai-me aos pés, fulminado pela sua nova identidade, morto, definitivamente morto, porque a partir de agora com vida própria, renascendo nos dedos de alguém que não conhece, que apenas pressente. Pressentirá?

Não é um anjo, Gabriel, nunca tentou sê-lo, mas os destinos de cada um são os destinos de cada um e pouco se pode fazer para contrariá-los quando estão absolutamente de acordo com a própria natureza. Será que acredito nisto? Não. Por vezes sim. O mais do tempo não sei... Não sei. Como qualquer anjo, Gabriel sofre. Não pelos outros, que são muitos e incontroláveis, mas por si próprio. Os outros são imperfeitos, toda a gente sabe. Há que compreender. Há que ajudar a que se guiem a si mesmos. A Gabriel ninguém guia. Ele não deixa. Não é por mal, não se julga superior, é apenas superiormente incapaz de lidar com as próprias imperfeições. E continua rodando na arena até ficar tonto, pára uns momentos, acende um cigarro, bebe um copo e fala de amor, beija alguém, se puder, e volta a rodar, procurando a saída que rejeita quando finalmente surge por parecer demasiado fácil, tão fácil que não pode ser real. Jamais lhe passou pela cabeça utilizar as asas para escapar, já o disse, Gabriel nunca quis ser um anjo e para mais os gatos não têm asas, muito menos os gatos vadios, que têm de ter os pés bem assentes no chão, mesmo quando caem, e não se podem dar a esses luxos.

Gabriel é bonito. Tem as belezas de muitos anos, muitas décadas, confusamente instaladas como numa rocha, as feições duras e marcadas com as marcas das vidas que viveu e das vidas que não viveu, feições sóbrias, de uma sobriedade que Gabriel não tem. Falo dele? Sim. E de mim, que nele me reconheço, reconhecendo-o em mim. Espelhos por detrás de garrafas. Tanto dizem os bares da natureza humana.

(...)


Dezembro de 2000

quinta-feira, abril 17, 2008

a lamparina pop

... está cheia de génios. A gente esfrega e sai uma maçã:

I still only travel by foot and by foot it's a slow climb,
But I'm good at being uncomfortable, so
I can't stop changing all the time

I notice that my opponent is always on the go
And
Won't go slow, so's not to focus, and I notice
He'll hitch a ride with any guide, as long as
They go fast from whence he came
- But he's no good at being uncomfortable, so
He can't stop staying exactly the same.


E esfrega-se mais uma vez, lá sai um maço de SG:

E tu, Maria, diz-me onde andas tu
qual de nós faltou hoje ao
rendez-vous
qual de nós viu a noite até ser já quase de dia?
É tarde, Maria.
Toda a gente passou horas em que andou desencontrado
como à espera do comboio na paragem do autocarro.


Os autores... os génios da lâmpada, tocam-se sempre, num ou noutro momento da nossa audição. E de dois fotogramas sem relação se faz uma sequência, ou melhor, uma sobre-exposição, alguém a correr de paragem em paragem de autocarro querendo crer que vai encontrar o comboio porque lida mal com o desconforto e não consegue evitar ficar exactamente na mesma. Mas foi uma das coisas mais importantes que descobri e aceitei no meio de muitas dores de crescimento: I'm good at being uncomfortable, como o aviador, como Dagerman, sou inconfortável, inconsolável. E pelo menos tento não procurar os horários do trans-siberiano na tabela da Carris.

tece

foi um instante
em que me apetecia que me apetecesse
mas a verdade é que não me apeteceu.

quarta-feira, abril 16, 2008

and i will...

... make the most of it, I'm an extraordinary machine.

chuva ácida sobre águas paradas

Elemento puro, a água. Mais puro que seja, mais vulnerável na sua essência à toxicidade. Quando acidifica transfigura-se nos comportamentos. A chuva esbate, por fim, o desenho amado, de traço grosseiro. E no banho-maria resistente às horas, aos dias, aos meses — ao apagar do lume, até — o cacau não amarga, azeda. Acre acre acre. Acre ao ponto de corroer a língua. Até ao esquecimento.


Claude Monet, Nenúfares, 1904

terça-feira, abril 15, 2008

segunda-feira, abril 14, 2008

de uma cegonha a outra

Tenho à minha frente cinco tsurus. Só três deles conseguidos. Os outros dois são os fracassos... e podiam ter pior aspecto, diga-se. É mais simples do que parece, este alfa e ómega do origami. Mas ainda assim, aprendi sózinha, como quase tudo o que realmente me tem feito diferença. E quase tudo tem sido também mais simples do que parece.

E foi o momento paulo coelho do dia. Desculpem lá, mas deu-me cá um gozo conseguir fazer o raio do passaroco...


Porto, Abril de 2008

sopro

O corpo me é dado — e com que fim,
Meu corpo único, tão de mim?

Pela alegria chã de respirar,
Silenciosa, a quem devo louvar?

Sou jardineiro e sou flor — cativo
Na prisão do mundo sozinho não vivo.

E já nos vidros da eternidade
Cai meu calor, meu sopro respirado.

Nele se grava um desenho para sempre,
Irreconhecível de tão recente.

Escorra do momento a água turva —
O desenho amado não se esbate à chuva.



Ossip Mandelstam, 1909, tradução de Nina Guerra

domingo, abril 13, 2008

(sei que há qualquer coisa...

... que de vez em quando me suspende a respiração. mas o quê?)

mas o quê?

Sabemos que andamos cá a fazer alguma coisa, mas... Há este medo miudinho transformado em prazer infantil de deixar invadir o corpo e com ele invadir os olhos que estiverem abertos para lhes mostrar mais, mas... Queremos dar qualquer coisa que havemos de receber, talvez até ser pagos por isso, sabemos que há uma utilidade inabalável nos nossos gestos inúteis, que vão em direcção a algo, mas... Queremos dar porrada nos encenadores ou talvez haja outra coisa que se possa fazer com essa gana, mas... Queremos o público connosco, e sabemos que a nossa responsabilidade não tem rival, que ela nos prende e nos leva a alguma coisa que nasce, mas... Sabemos que há algo no teatro que nos dá ar para respirar, mas o quê? É que isto é estranhíssimo, pá...

Nuno Preto e Pedro Frias
fotografia de Pedro Vieira de Carvalho

Segundo Segundo
encenação de Rodrigo Santos para o Mau Artista
hoje foi na Tertúlia Castelense, a 25 de Abril será em Barcelos e pode ser que continue por aí

sábado, abril 12, 2008

ainda

Visions of Johanna
Visions of Johanna...
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mil

há qualquer coisa nos nomes acabados na letra "l". grabriel, miguel, rafael, sim, arcanjos, mas não é isso que lhes embeleza o som. anil. abril. há uma doçura própria no enrolar da língua. e alguma coisa que fica em aberto, no ar, no meio do arco, em suspensão. fermata. fermatas mil. substantivos masculinos, todos. talvez aí resida o segredo, pois não há consoante mais feminina que o "l" terminando em vapor uma palavra.


... baril. que é um adjectivo.

sexta-feira, abril 11, 2008

sou eu que sou um alien ou está tudo louco?

Cinema: IndieLisboa cancela iniciativa "Filmes na Escola" devido à polémica sobre uso de telemóveis


Independentes, mas moderadinhos, está bem? À boa maneira portuguesa, mistura-se alhos com bugalhos e deita-se fora uma óptima oportunidade de lançar à praça um antídoto para a mais recente histeria nacional. Filmes de ficção ou documentários, curtos, criados por estudantes e levados a concurso. Perigosíssimo, é óbvio que o resultado seria que todos os putos desatariam a empurrar professores para os filmarem estatelados e enviarem para a mostra, certo? Oportunidade para a desmistificação, para a limpeza de teias de aranha, não, caramba, temos brandos costumes e somos indies com muito respeitinho.

Mas a sério, sou eu que sou estúpida? Ou isto é provinciano e cobardolas p'a burro?

the beautiful thin woman's rendition of 'ballad of a thin man'




[é que nem vou escrever daquelas coisas estúpidas, tipo quando for grande quero ser assim; vou é dormir e sonhar com a gaja, é mais realista. ai, esta mulher tira-me o fôlego. e, ó Rodrigues, ainda lá está a Moore, uma delícia de Joan Baez, ou seja, não ruiva, mas sempre a Moore]

roundabout dylan




São seis em um, um em seis. O mais dylan dos dylans, o mais icónico, é ela, o eléctrico judas, e talvez Rimbaud, A-r-t-h-u-r R-i-m-b-a-u-d. Há o velho, há o miúdo, mas o miúdo não precede o velho, como o velho não é o fim mais do que o início, mais do que Billy the kid, mais do que Woody Guthrie dizimando fascistas com dois acordes. Há o protesto transformado em pastor de rebanhos, há a fama e a art life e a drug life e a terminal honestidade da mentira com cheiro a terra, revolvida ou electrificada ou calcetada. Todas as partes de Dylan. E ele não está lá, pois claro que não está. Mas está em Cate Blanchett, em Christian Bale, no maravilhoso puto Marcus Carl Franklin, em Heath Ledger, em Ben Whishaw, em Richard Gere enfrentando Pat Garrett, o seu lendário assassino. Está na trip genial de Todd Haynes, tese desacadémica sobre um artista indissecável. E não, não esteve lá. Porque esteve ao meu lado durante duas horas, rindo, "tripando", pensando e calando comigo. Foi a mim que apresentou o Brian Jones como o guitarrista daquela "groovy covers band".

quinta-feira, abril 10, 2008

quarta-feira, abril 09, 2008

hipótese 8

Ter uma arma na mão não implica dispará-la. E não a disparar não a torna inútil, provavelmente só assim se tornará num objecto verdadeiramente útil. O taurino "take no prisoners" não se aplica à plácida fúria que vem de Turim. O poder pode ser exercido pela sua recusa. Com a mesma força com que se exibe, pode dissimular-se, pode abortar-se.

nada Placida

Até que ponto a posse se sobrepõe à necessidade de liberdade? Será que essa necessidade de liberdade existe em essência, ou é apenas mais uma construção? Pode a prisão, em relação bi-unívoca de poder, ser uma forma de liberdade? Existe amor para lá do desejo, da pertença e da convenção? Conseguir o que se persegue, pode ser inebriante, pode ser indiferente, pode ser uma agonia?

Como concretiza uma mulher uma relação de poder com um homem que lhe foge? Onde está a violência? Hipótese 1: nas palavras. Hipótese 2: na voz. Hipótese 3: no corpo. Hipótese 4: no sexo. Hipótese 5: no confronto. Hipótese 6: na máscara. Hipótese 7 [tinham de ser sete, claro]: na submissão.

Uma mulher poderosa e determinada a raiar a obstinação, tem de ser uma amazona, ou pelo contrário, pode ser de uma fragilidade extrema? As botas cardadas serão uma forma de corresponder ao estereótipo da mulher forte masculinizada, mas porque razão hão-de ser as botas cardadas um símbolo de masculinidade? A extrema feminilidade pode ser uma forma de contrariar o estereótipo, mas não será isso também um modo de reconhecer no estereótipo a autoridade final? Uma outra forma de aceitar as ordens, pois...

Placida, é o seu nome. Gosta de ser um homem, de dia, de noite já não.


Love is a losing g...

a Aldina tem casa nova

Aqui. Bem-vinda ao condomínio, vizinha.



Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias



Sophia de Mello Breyner

o quarto andar...

... anda muito movimentado. É a segunda vez em poucas horas que me vêm bater à porta por engano. A primeira foi cerca das duas da manhã. Há por aqui alguém que se anda a divertir imenso. Um era loiro, o outro moreno, jejeje...

terça-feira, abril 08, 2008

rei pescador 9.0 (de graça)

Stay true to yourself. Let your voice ring out, and don't let anybody fiddle with it. Never turn down a good idea, but never take a bad idea. And meditate. It's very important to experience that Self, that pure consciousness. It's really helped me. I think it would help any filmmaker. So start diving within, enlivening that bliss consciousness. Grow in happiness and intuition. Experience the joy of doing. And you'll glow in this peaceful way. Your friends will be very, very happy with you. Everyone will want to sit next to you. And people will give you money!


David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

rei pescador 8.0 (a vida tem grão —ou shadowplay)

Shadow Play
Shadow Play.m4a
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The DV camera I currently use is a Sony PD-150, which is a lower quality than HD. And I love this lower quality. I love small cameras. The quality reminds me of the films of the 1930s. In the early days, the emulsion wasn't so good, so there was less information on the screen. (...) And sometimes, in a frame, if there's some question about what you're seing, or some dark corner, the mind can go dreaming. If everything is crystal clear in that frame, that's what it is — that's all it is.


David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

domingo, abril 06, 2008

pelo picotado

Já não há escapes neste tabuleiro, só electricidade. Pequenos terremotos regulares abalam a ponte e passam com gente lá dentro que nem repara na gente cá fora, os olhares fixos nos pontos de luz que o Douro leva. Nas escadas dos Guindais, só os gatos vivem, distribuem-se, alargam-se, duas crias adolescentes fazem uma dança de pêlos eriçados, degraus acima, degraus abaixo, entenderam-se, fim do primeiro round. No vértice linear do telhado abandonado alinham-se sete gaivotas de costas para o rio, parecem vigiar a muralha defendida pelas laranjeiras que, confiadas ao vento, disparam o seu cheiro de primavera e me fazem voltar para leste, procurando a origem desta fugidia felicidade olfactiva. Cá estão elas, nas minhas costas, o vento muda, o odor esvai-se, mas as laranjas brilham orgulhosas. Sob os meus pés, o bairro da Sé dá sinais de vida. Ó Riiiiiiiiiiita, uma primeira voz, que se repete. E a segunda voz, também pujante, também feminina, Ó Riiiiita, olh'á tua manhe! Com a rapidez de um rato do campo, um corpo franzino com uma saia vermelha cruza a escadaria e desaparece no labirinto.

Recortado pelo picotado, este cupão de cidade parece-me neste momento o lugar mais tranquilo do mundo.

Ponte D.Luiz, Porto
Abril de 2008

não digam ao fado...

... que há quem o use para encher pneus, que é como quem diz para encher egos. Que há quem lhe viole as palavras, deixando-as pelo caminho como se nada valessem, como se valessem tão pouco como os corpos que envelhecem à frente dos espíritos ainda prontos a viver de vinho e caldo verde numa qualquer colectividade perdida nos subúrbios do subúrbio. Não lhe digam que há miúdas de quinze anos que acham que se fizerem voz grossa, badalarem cada nota e se encherem de manias e trejeitos, hão-de conseguir o estatuto de diva. Digam-lhe só que nessas salas escondidas, nessas salas das traseiras, nesses pavilhões polivalentes largos demais para caber Alfama, se pode encontrar um rosto de criança de sessenta anos que sorri como quem chora de felicidade. E que para cada sorriso semelhante, há uma Marla magnética, verdadeira, bela como as palavras que percorrem o seu corpo e os seus lábios. Há lágrimas no fado que nos fazem querer passar o resto da vida assim, com os olhos húmidos e um calor nascendo no centro do corpo e irradiando luz em todas as direcções. Não digam ao fado que os bons amigos não nos fazem chorar. Digam-lhe antes que essa pode ser a maior das generosidades, esta generosidade cantada. Ele vai compreender.

sábado, abril 05, 2008

meow... pfff...



jejeje... agradecimentos ao Hugo, que me apresentou estas delícias da tradução simultânea.

não há público

Há poucos dias lá ia eu e a minha alma-gémea de rua palco derivas medos e garras, Passos Manuel acima, o sol a pôr-se lá atrás, ao fundo da rua, enquanto fazíamos as nossas recuperações de ensaio entre tiradas filosóficas e risos patetas. Aproxima-se um homem na casa dos sessenta, barrigudo, careca, sorrindo bonacheirão, mãos bem enterradas nos bolsos do blusão largo. Ao passar por nós lança um convicto "E viva o teatro!" e nós estacamos, boquiabertos. Ainda tenho presença de espírito para lhe responder com um tímido "viva!" e ficamos a vê-lo descer a rua, sem nunca se voltar. Não precisou de confirmar o efeito da sua saudação. Não foi uma provocação, foi uma dádiva.

os restos e os dias certos

É verão. Sim, sei que ainda não é, mas manga curta na praça à meia-noite só pode significar uma coisa: é verão. Mesmo que o resto do Natal ainda vá no Batalha. Já nesta prateleira procurei este livro, não há muitos dias, e não estava lá. Ainda fiz menção de o procurar, mas ele sabia que nesse dia não queria realmente encontrá-lo. Hoje é o primeiro que vejo, apesar de ser pequenino e discreto aqui está saliente, meio saído da estante, meia lombada sobre o vazio, pronto a sair para a minha mão sem que eu o procure. Encontrou-me. E em minutos estou cá fora, com a compra e a oferta, restos do dia da poesia consubstanciada em Ruy Belo. Ainda é cedo. Sento-me. E sob as copas de São Lázaro, protegida do sol, mergulho na orla marítima. E ao chegar aqui, aos ácidos e óxidos, neles me vejo como sempre, mas de súbito me surges tu desenhado na página, nova camada de cor tão díspar sobre o familiar tijolo, e só eu te vejo e dispara-se-me o coração. Fecho o livro, é preciso seguir, o dia continua e não se pode estar sem fazer nada. Abri-lo-ei mais tarde, à luz de uma vela, depois de risos e finos em manga curta à meia-noite na praça.


É uma coisa estranha este verão
E no entanto ia jurar que estive aqui
Não me dói nada, não. A tia, como está?
Claro que vale a pena, por que não?
Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu
Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina
Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?
Até já soube formas de o dizer de outra maneira
Há coisas importantes, umas mais que outras
Basta limpar os pés alheios à entrada
e só mandarmos nós neste templo de nada
E o orgulho é a nossa verdadeira casa
Nesta altura do ano quando o vento sopra
sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?
Não, cargos ou honras não. Um simples gato ao sol,
talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

Ó dias encobertos de verão no meu país perdido
mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno
estas ou outras formas de morrermos dia a dia
como quem cumpre escrupulosamente o seu horário de trabalho
Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem,
estou pelos ajustes porque sei que não há mais
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra e vou fazendo anos
pois não se pode estar sem fazer nada

Curriculum atestado testemunho opinião...
que importa, se o verão mesmo é uma certa estação?
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas
que há cores mais bonitas do que outras?
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não será como prestar
em certo tipo de papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las
como o gato que cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar comigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
e que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce

Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível? É necessário
Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido
a um número. Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída
Precário, provisório, é o teu nome
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo - o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser
E perguntar será para ti responder

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
- que ao dominar-te deixa que domines - mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto



Ruy Belo, Ácidos e óxidos

sexta-feira, abril 04, 2008

mas para bem compreender a filosofia...

... do bicho, é indispensável vê-lo em acção pela fresquinha. Qualquer semelhança com a realidade é absolutamente coincidente.




...

baaaaaauuuuuuuu.

quinta-feira, abril 03, 2008

obrigadinha, ó Rodrigues...

Graças ao teu e-mail, companheira-velha-dos-gatos-palhaça, fiquei com umas saudades que me pelo do meu Abílio, o gato mais enervante dos Anjos.



Mas porquê, porque raio é que eles fazem isto tudo, tal e qual, para depois ficarem a olhar para ti com a mão na maçaneta, a decidirem se entram ou não? E vá, este é um gato consequente e com um objectivo bem definido. As minhas pestes, não poucas vezes, ficam meio-dia especadas frente à porta e acabam por me virar o rabo e voltar para de onde vieram.

aritmeço-te

sim.
sim, ia tudo começar com um não.
não me metes medo.
não me meto medo.
se tremo, outras razões
que desconheces
se insinuam no céu e na terra
ou não.
não, de não haver razão.
não, de encher os braços
de garrotes para que o sangue
não
circule
e se possa dizer, vês? -não,
diz a veia que estrangulo
diz a mão azul que atordoei berrando
não
acordes.
mas era tanto azul
azulão
que arrancou de mim um
sim.
não vou começar no
não
não seria honesto.
sim,
mais um
não e é par a negativa.
igual por fim
a sim.

quarta-feira, abril 02, 2008

adenda (à linha)

Às pessoas acontece o mesmo que aos edifícios antigos. Mas num processo paralelo. Até ao fim, lado a lado, a acção da natureza, interna e externa, e a construção humana, por dentro e por fora.

Talvez por isso mesmo pouco haja de mais belo do que ver alguém sair da escuridão.

terça-feira, abril 01, 2008

rei pescador 7.0 (eu também)

Often in a scene, the room and the light together signify a mood. So even if the room isn't perfect, you can work it with the light and get it to feel correct, so that it has the mood that came with the original idea. The light can make all the difference in a film, even in a character. I love seeing people come out of darkness.


David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

rei pescador 6.0 (a beleza)

When you see an aging building or a rusted bridge, you are seeing nature and man working together. If you paint over a building, there is no more magic to that building. But if it's allowed to age, then man has built it and nature has added into it - it's so organic. But often people wouldn't think to permit that, except for scenic designers.


David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

rei pescador 5.0 (um capítulo inteiro)

The box and the key

I don't have a clue to what those are.



David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

dia do teatro

Eheheh... hoje é que devia ser. Feliz dia das verdades!

centro

Naturalmente, sem pensar, sentas-te no meio. Não te puxa o íman da virtude, mas o ponto privilegiado onde podes centrar todo o compasso do horizonte. Também é o ponto mais desimpedido, não há toldos, não há rastos de casco no ancoradouro, a pedra é vazia, pronta a receber e a acoitar. Naturalmente, sentas-te no meio. Cabes. Cabes tu, dezenas de pombos e duas ou três gaivotas.

Giras o compasso. Mas algo te força, quase sem te aperceberes, a voltar o olhar para a foz. Mas o quê? Ou porque te forças a fazê-lo, se escolhes o lugar para poderes continuar a escolher? Se aqui o jogo dançado se mistura em rio e mar e balança entre a escuridão profunda e os misteriosos sóis de reflexos prateados, que ondulam projectados não se sabe por entre que ausentes nuvens no céu inesperadamente limpo?

Porque não esqueces a foz, por uns momentos que seja? Não te sobra só o caminho da nascente. São largas as margens.