sábado, agosto 25, 2007

My funny valentine

A estação dos anjos não tem novidades. Não tem mosaicos em colorido novo-rico, nem tiradas filosóficas, nem cruzados tomando Al-Usbuna, nem obras de arte. É escura e o ar é esverdeado, a cor está toda na gente, nos saris, nos turbantes, nas sandálias prateadas da cantilena nordestina.

Ando geralmente em observador de silêncio minucioso. Mas esta noite o Chet sussurra-me palavras doces ao ouvido, e estou metida com as minhas ressonâncias internas. Esperando no banco corrido, espreito apenas de esguelha, num quase-reflexo ao movimento de uma pequena pasta de couro manhoso que ao abrir-se revela, no lugar de documentos de alta importância e confidencialidade, duas ou três folhas soltas de palavras cruzadas, uma factura perdida, uns poucos papéis com parcos e indistintos rabiscos. O olhar está pouco voluntarioso, hoje, e do meu co-esperador retenho apenas um fato escuro e a forma dos sapatos bem assentes no chão, as pernas longas em ângulo recto. O ruído dos carris e o quadro electrónico avisam, Destino: Cais Sodré.

My funny valentine
sweet comic valentine
you make me smile with my heart


É raro sentar-me. Os meus percursos metropolitanos costumam ser relativamente curtos e só de pé se pode livremente escolher um filme. Há uma personagem que se destaca progressivamente. Mesmo sentado é claramente alto e grande. Grandes mãos, grandes pés, grande cabeça, grandes orelhas, feições largas. Até espanta como tal imagem leva tão longos segundos a sobressair da mole que se espalha pela carruagem, com o seu fato escuro e os longos sapatos rematando o ângulo recto das pernas. Só quando abre a pasta de couro percebo que os meus olhos vêem agora de frente o que há pouco só quiseram ver de lado.

your looks are laughable
unphotographable
yet you're my favourite work of art


O rosto amplo parece marcado de uma perplexidade residente. Os sobrolhos altos sobre o nariz e descaídos nas têmporas, interrogativos, o lado esquerdo do lábio e do nariz ligeiramente erguidos, como num espasmo muscular que, num rosto aparentemente neutro, uma imagem ou uma emoção não esperada possa ter carimbado há dez anos ou há dez minutos. Ou talvez até haja relatos médicos publicados onde se fale na perplexidade congénita, confesso a minha ignorância. O nariz é grosso, como os lábios, parece ter polpa. Todo um conjunto que poderia ser grosseiro é estranhamente simétrico, quase divertidamente harmonioso. Com a pastinha de couro apoiada sobre os joelhos e enfiado no seu fato escuro, parece uma grande criança a caminho de algum evento que não compreende, mas que é de notória importância. O mais provável, no entanto, é que apenas venha do Banco, a caminho de casa.

is your figure less than greek?
is your mouth a little week?
when you open it to speak are you smart?


Fica subitamente num plano mais afastado quando um figurante redondo, barrigudo, camisola amarela, boné e passe social pendurado ao pescoço pelos tradicionais cordões de sapateiro, se vem prantar junto ao poste, como que sublinhando pela paródia a melancolia do meu protagonista. O camisola amarela aproxima-se da porta e deixa o enquadramento. O foco regressa ao homem grande e de fato escuro que se prepara para sair na próxima paragem. Fecha a pastinha de couro e ergue-se, talvez lentamente, mas correctamente no seu tempo grande e melancólico, os sobrolhos não mexem, arco constante e intocado, a metade esquerda do lábio no seu esforço contínuo para alcançar o fulcro da ogiva que protege os olhos. Os olhos grandes. Dirige-se a onde estou, à porta. Nem por um segundo se apercebe de que é observado, nem por um segundo eu deixo de o observar. Estamos ambos confortáveis. E é confortável assistir à sua saída de cena, lentamente cruzando a porta e poisando o pé no novo cais enquanto o Chet estende nos meus ouvidos os versos finais da banda sonora claramente cantada para este largo buster keaton.

don’t change a hair for me
not if you care for me
stay
little valentine stay
each day is valentine’s day.


As portas fecham-se com o trompete. E eu acordo subitamente e percebo que acabo de perder a minha saída. Vejo os créditos finais e saio no Cais de Sodré.

quinta-feira, agosto 23, 2007

É tempo...


... de olhar a realidade de frente.

Turim, Museu do Cinema, Março de 2007
fotografias de P.Pernas [lembrei-me de repente do nome]
agradecimentos à signora Huppert, la donna dei ritrati

sexta-feira, agosto 17, 2007

1924-2007

Os últimos cinco

livros. Que os meses... enfim, se de momento sinto que são para esquecer, há violetas sobre os rochedos dentro e fora de mim que me sussurram que são para lembrar, que são para crescer, que são para doer. O meu velho ciber-amigo, Vítor I., já me lançou o repto há mais de um mês, mas este foi o meu tempo, o tempo de mortes entre duas mortes; antes de Bergman, uma morte minha, pessoal, emocional, depois de Antonioni a morte de ontem, que é de todos, até dos que nunca se aperceberam dos momentos sublimes em que a bateria de Max Roach marcou a pulsação da Terra. Mas como às tantas gritam os meus putos neste doce espectáculo que estou a ajudar a remontar, onde está cada mistério? Cada ruína de império? Onde é que se regista? Em que gavetas e arquivos? É nos livros, é nos livros! A eles volto sempre que preciso de parar o ciclo venenoso de fugir de me encontrar para me encontrar fugindo. Apenas um aviso. Vou a meio de quase todos. Vou a meio de quase tudo.

  • Dix heures et demie du soir en eté, Marguerite Duras
  • A condição humana, Hannah Arendt
  • A arte de viver, Epicuro
  • Contos, Dorothy Parker [em exibição neste momento, posso dizer, porque de tão deliciosamente visuais parecem médias-metragens, que seriam longas se fossem parar às mãos do Manoel de Oliveira...]
  • Ensaio sobre o ciúme, Lev Tolstoi, caso não tenham dado por isso [releitura]
E não nomeio vítimas. Quem quiser, que agarre o desafio e exponha a sua intimidade literária.

quinta-feira, agosto 09, 2007

Coda

E pronto, afinal durou mesmo uma semana. E para fechar isto um bocadinho mais levemente, deixo-vos um sambinha dedicado a todos os homens burros deste mundo. Os mais burros dos burros, porque não são realmente burros, antes escolhem sê-lo. Mais uma pergunta a la Manel: e haverá burrice maior? Por isso estas palavras na boca de um homem são um verdadeiro bálsamo. Mas também, não é um homem qualquer. Convosco, Chico Buarque de Hollanda.

Deixe A Menina.mp3

Epílogo em Mi maior, a Dominante

Porque é que não nos ouvimos melhor? Porque é que tantas pessoas substituem a comunicação pela posse? Porque é que há quem passe anos na obsessão de definir o que é o outro, em vez de tentar sentir quem é o outro? Porque é que o desamor pode doer como uma morte? Porque é tanta gente incapaz de viver num mundo cheio de porquês?

A sonata Kreutzer - mais um excerto para acabar com os excertos

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O livro da semana - XXVII

Só comecei a ver as coisas com clareza depois de a olhar deitada no caixão. [...] Só quando olhei a sua face sem vida é que tomei consciência do que realmente tinha feito. Compreendi que tinha sido eu, eu, quem a tinha matado, ela que pouco antes estava viva, quente, e se movia, agora... agora estava imóvel, da cor da cera fria, e ninguém, jamais, podia reparar esse facto.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XXVI

Não havia vestígios da sua beleza anterior e, em seu lugar, senti algo que me repugnou. Parei no umbral da porta.
- Aproxima-te dela... aproxima-te dela! -exclamou a irmã.
"Sim, provavelmente quer dizer-me que está arrependida", pensei. "Devo perdoá-la? Sim, como está às portas da morte, acho que devo perdoá-la", decidi interiormente, esforçando-me para ser magnânimo. Então aproximei-me da cabeceira da cama. Com dificuldade ergueu os olhos na minha direcção, um deles estava mesmo muito ferido, e balbuciando e gaguejando por entre as palavras, disse: -Conseguiste o que querias! Mataste-me.
[...]
Olhei as crianças e a sua cara magoada cheia de equimoses; e pela primeira vez esqueci-me de mim, dos meus direitos, do meu orgulho; pela primeira vez consegui vê-la como um ser humano, e tudo me pareceu tão frívolo e mesquinho que me feriu profundamente; até o meu ciúme e o acto que tinha cometido me parecim tão graves, tão odiosos, que me sentia pronto a prostar-me a seus pés, pegar-lhe na mão e exclamar, "Perdoa-me!", mas não tinha coragem para tal. Ela fechou os olhos e permaneceu em silêncio, era evidente que estava demasiado fraca para falar. De repente a sua cara disforme estremeceu, o seu olhar tornou-se subitamente carregado, e afastou-me dela suavemente.
- Porque é que tudo isto aconteceu? Oh, porquê?
- Desculpa-me! -exclamei. -Perdão. Isto é tudo um disparate.
- Oh, se eu não morresse! -proferiu, tentando erguer-se um pouco, olhando-me nos olhos fixamente; o seu olhar brilhava febrilmente. -Fizeste tudo à tua maneira. Odeio-te! [...] Mata-me agora, mata-me agora; já não tenho medo.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XXV

Ergui-me do sofá, tirei os cigarros e os fósforos e comecei a fumar. Mesmo antes de ter acabado de fumar o meu cigarro, fui acometido por acesso de sono e acabei por adormecer. Dormi cerca de duas horas. Sonhei que a minha mulher e eu estávamos a viver momentos de grande felicidade; tínhamos discutido, mas já tínhamos feito as pazes e no fundo gostávamos um do outro. Fui acordado por alguém que batia à porta.
[...]
- Vasa, vai ter com ela. Ah! Como tudo isto é horrível!
"Será que devo mesmo ir vê-la?, questionei-me. E decidi de imediato que era meu dever ir ter com ela, que era a posição correcta a tomar nestes casos; quando um marido mata a mulher, é obrigado a ir vê-la. Se sempre foi assim, então eu devo fazer o mesmo. "Sim, se for necessário suicidar-me", disse para comigo, "terei muito tempo para o fazer mais tarde"; e segui a minha cunhada. " Vou ter de me preparar para as recriminações e culpas", disse para comigo, "mas não posso deixar-me afectar".
- Espera um momento, -exclamei, dirigindo-me à minha cunhada; -É absolutamente idiota ir sem botas; deixa-me só calçar os chinelos.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XXIV

Recordo-me que um segundo antes, exactamente um segundo antes de cometer esse acto, eu estava terrivelmente consciente de que ia matar uma pessoa, de que tinha morto uma mulher, uma mulher indefesa, a minha própria esposa. Relembro o horror indescritível deste estado de espírito; posso ainda acrescentar que me recordo vagamente de lhe ter cravado o punhal no corpo, retirando-o imediatamente, desejando, contudo, remediar o que acabara de fazer. Fiquei imóvel por uns instantes, à espera de ver o que iria acontecer, e se seria possível reparar o que tinha feito.
[...]
Então apercebi-me de que não tinha remédio o que eu tinha feito; e, no mesmo instante, também decidi que não queria reparar o acto que cometera; e que matá-la tinha sido a minha opção, e que tinha sido a opção certa.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XXIII

Se alguém afirmar que durante um acesso de loucura não sabe o que fez, ou está a dizer tolices, ou está a mentir. Eu sabia perfeitamente o que estava a fazer e nem por um momento deixei de estar consciente do acto que cometia. Quanto maior era essa fúria, mais forte era a luz que iluminava a minha consciência, alumiando cada recanto da minha alma, obrigando-me a assistir a tudo o que fazia. Também não posso afirmar que sabia o que iria fazer de antemão; mas penso que uns segundos antes de cometer fosse o que fosse me era dada a opção de escolha, para que ainda me pudesse arrepender e, assim, a decisão tinha sido minha. No meu caso, eu sabia que lhe tinha cravado o punhal no corpo. Sabia que estava a cometer um acto horrível, algo que nunca fizera antes e que iria ter consequências gravíssimas. Mas esse estado de consciência durou apenas uns instantes, como a luz de um relâmpago na escuridão. A consciência do acto e da sua natureza era dolorosamente nítida. Ainda me lembro da leve resistência oferecida pelo espartilho, e o atravessar do punhal pelo seu corpo suave. Ela ainda agarrou o punhal com ambas as mãos, mas sem sucesso, apenas fazendo com que também estas ficassem feridas.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XXII

Apesar de toda a fúria que sentia, não me esquecia da impressão que causava nas outras pessoas. Tempos houve em que essa impressão me serviu de guia.
Virei-me na direcçao da minha mulher. Encontrava-se caída no sofá e, com as mãos sobre os olhos magoados, olhava-me. A expressão do seu rosto era de terror e ódio. [...] Ainda assim, talvez tivesse conseguido suster-me e não ter feito o que fiz, se ela continuasse calada.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XXI

A primeira coisa que fiz foi tirar as botas; já de meias, dirigi-me à parede por cima do sofá, onde estavam penduradas as minhas armas e os meus punhais; tirei um punhal de Damasco de lâmina curva e extremamente afiada e que, por sinal, nunca tinha sido usado. Desembainhei-o. A bainha escapou-me das mãos e caíu para trás do sofá e lembro-me de ter pensado, "tenho de ir buscá-la mais tarde ou ainda acaba por se perder".


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

quarta-feira, agosto 08, 2007

O livro da semana - XX

Mas o que é que eu estou a fazer aqui sentado no escritório enquanto eles se estão a divertir e a comer?... Oh, mas por que não a estrangulei da outra vez? [...] Recordo-me de me sentir consumir pelo desejo de fazer qualquer coisa, de agir; lembro-me de que na minha mente só ficaram retidos os pensamentos indispensáveis à minha vingança, enquanto todos os outros se desvaneceram num ápice. O meu sentimento era idêntico ao de uma fera ou de um ser humano que se encontra num estado de grande excitação face ao perigo; nesta altura age com toda a precisão, sem pressa, mas sem perder tempo e tendo em mente um só objectivo.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XIX

Eu, um homem honesto, filho de pais respeitáveis; eu que toda a vida acarinhei o sonho de viver alegremente em família; eu, o marido que nunca foi infiel, estava a viver para presenciar tudo isto! Ela, [...], atirar-se assim para os braços de um músico, só por este ter uns lindos lábios rosados! Não, ela não é um ser humano, ela é... [...] Possivelmente esta situação já se vinha a arrastar há muito tempo. Se eu tivesse regressado no dia seguinte, e não nesta noite, ela teria vindo ao meu encontro, com o seu cabelo lindamente penteado, envergando um vestido que realçasse a sua cintura fina, fazendo movimentos lânguidos e graciosos, teria feito com que o ciúme, como um animal selvagem preso dentro de mim, me tivesse despedaçado o coração.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XVIII

Parei imediatamente de ter pena de mim, e fui percorrido por um estranho sentimento: só dificilmente vai acreditar no que lhe vou dizer: era uma sensação de alegria por saber que a minha tortura estava prestes a terminar, agora podia castigá-la, podia livrar-me dela e dar largas ao meu ódio. E assim aconteceu, libertei toda a minha raiva, que me transformou num animal selvagem, numa besta maligna e astuciosa.
[...]
Quando me encontrei sozinho, pronto a agir, fui invadido por um sentimento fatídico e de horror. O que deveria fazer? Ainda não tinha decidido; só sabia que tudo tinha que terminar ali, e que já não podiam existir quaisquer dúvidas sobre a sua culpa, e que por isso eu irira castigá-la e romper para sempre com todos os laços que nos uniam.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

terça-feira, agosto 07, 2007

O livro da semana - XVII

Mas em toda esta situação havia uma particularidade deveras revoltante: eu estava convencido de que a minha mulher me pertencia definitivamente, como se ela fizesse parte de mim e, ao mesmo tempo, sentia que não a podia possuir, que ela não era minha e que podia dispor da sua pessoa como bem entendesse [...]. Não conseguia decidir sobre o que devia querer ou desejar. Era pura e simplesmente a loucura.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XVI

As oito horas de viagem na carruagem foram uma experiência horrível, que jamais poderei esquecer enquanto viver. Não sei precisar se esta alteração se deveu ao facto de eu ter tomado consciência de que a viagem me aproximava irremediavelmente do meu objectivo final, ou se era apenas o sentimento febril e de desassossego que em geral nos acompanha numa viagem de comboio. Apenas sei que, a partir do momento em que entrei no compartimento, perdi o controlo dos meus pensamentos, que voavam de umas imagens para outras incessantemente, cada uma mais cínica do que a anterior, inflamando cada vez mais o meu ciúme, focando sempre o mesmo tema... o que se estaria a passar em minha casa na minha ausência, e como ela me estava a ser infiel. [...] "Não, não pode ser! Não, as minhas suspeitas não têm qualquer fundamento. Não foi ela própria que me afiançou ser uma desonra eu sentir ciúmes por aquele homem? Sim, ela tinha-mo dito; mas estava a mentir; esteve sempre a mentir-me."
[...]
Não conseguia descobrir nenhum tema que afastasse os meus pensamentos das suas pessoas. Eu sofria terrivelmente. Mas o que me causava maior dor era a incerteza, a dúvida, a ignorância em que me encontrava e o facto de não saber que sentimento devia ter para com ela: amor ou ódio. Sentia-me flagelado pela minha angústia, de tal modo que pensei em deitar-me sobre os carris de ferro e deixar que o comboio me despedaçasse, terminando com todo o meu sofrimento. [...] Só não o fiz por sentir pena de mim próprio, o que imediatamente converti em ódio em relação à minha mulher. [...] Quanto a ela, o meu ódio era total. "Eu não posso morrer e deixá-la viva," disse para comigo. "É justo que ela sofra o mesmo que me tem feito sofrer".

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XV

E como é comum acontecer nestes casos, senti-me despertar de repente com um choque eléctrico. Acordei a pensar nela, no amor que nutria pela minha mulher e também pensei em Trootkhatschevsky. Senti o meu coração esmagar-se pelo ódio que sentia nesse momento por ambos. Fiz todos os esforços para dar ouvidos à razão. "Mas que suspeita mais absurda!"
[...]
Esta era uma das ideias que trespassavam o meu cérebro; mas havia outra muito diferente: e por que razão não poderia acontecer? Que paradoxo é que podia existir se uma coisa tão natural como essa pudesse suceder? [...] E ela? Quem é ela? Ela sempre se revelou misteriosa. Não a conheço. Só sei que é uma criatura de instintos, e nada é capaz de refrear um ser assim.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

segunda-feira, agosto 06, 2007

O livro da semana - XIV

Julgo ser supérfluo dizer que eu era uma pessoa extremamente vaidosa. Viver sem vaidade é quase impossível.
[...]
Tocaram a Sonata Kreutzer, de Beethoven; conhece o primeiro presto? Eh? Ah!... -exclamou. -Essa sonata é uma música estranha, especialmente a primeira parte. Em geral a música é algo estranho. Eu não a compreendo. Mas o que é a música? Que efeito é que ela produz? E porque produz ela o efeito que produz?
[...] De facto, age sobre nós, só que produz um efeito terrível... falo em meu nome... em vez de deleitar a alma, nem a eleva nem a deprime, apenas tem o dom de a irritar? Como posso ser ainda mais claro? A música obriga-me a esquecer-me de mim próprio e do estado em que me sinto; transporta-me para outra dimensão. A sua influência faz-me imaginar e sentir coisas que não são verdadeiras, compreendo coisas que não entendo, faço coisas que estão para além da minha capacidade. [...] No caso de uma marcha militar a situação é bem diferente; os soldados avançam ao compasso da música, guardando tempo para essa mesma música, e o objectivo é alcançado; se se trata de música para dançar, o objectivo é alcançado do mesmo modo [...]; se falarmos numa missa, eu comungo ouvindo os cânticos, e também aqui a música não foi em vão. Mas noutros casos esta só provoca irritação, sem dar qualquer pista sobre o que fazer enquanto este sentimento durar. [...] Na China a música é uma preocupação de estado; e é assim que deve ser. Será que algum país iria tolerar que alguém hipnotizasse outra pessoa para depois fazer com essa pessoa o que bem lhe aprouvesse, em especial se este hipnotizador, por exemplo, fosse sabe Deus quem, uma pessoa sem moral?
A música é, de facto, uma arma terrível para quem a souber manejar.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XIII

- Só tu me consegues pôr assim louco; já não respondo por mim! Ao libertar o meu ódio, tinha saboreado este momento com um prazer inebriante; senti o desejo de fazer algo ainda mais extraordinário, algo que representasse o culminar desta minha raiva louca.
[...]
Uma hora mais tarde, a ama veio dizer-me que a senhora estava histérica. Dirigi-me ao seu quarto; soluçava e soltava gargalhadas alternadamente; não era capaz de dizer uma palavra e o seu corpo tremia violentamente. Agora não estava a fingir, estava mesmo doente.
Acalmou ao amanhecer, e ambos fingimos que aquela discussão tinha surgido devido ao chamado "amor".
[...]
O que dizia não era nenhuma mentira. Ela acreditava honestamente no que dizia; de facto, esperava com estas palavras provocar-me algum contentamento e, deste modo, conseguir defender-se dos meus ataques. Mas não conseguiu. Tudo estava contra ela, e em particular aquela música amaldiçoada.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

domingo, agosto 05, 2007

O livro da semana - XII

É verdade que desconcertei o par ao aperceberem-se do meu próprio embaraço: durante muito tempo fui incapaz de proferir uma palavra que fosse; eu parecia uma garrafa virada de pernas para o ar, não deixando sair o líquido nela contido por estar demasiado cheia. Queria recriminá-los, expulsá-lo de minha casa, mas sentia, por outro lado, que devia parecer amigável e afável para com o músico. E assim fiz; fingi que concordava com tudo... e obedeci ao impulso de intensificar a minha estranha relação de civismo e cordialidade para com ele; só que a sua presença agudizava ainda mais o meu sofrimento. [...] Ele permaneceu o tempo que achou indispensável para fazer desaparecer a impressão desagradável que eu tinha provocado ao irromper pela sala com a minha expressão de terror estampada no rosto, e pelo silêncio embaraçoso que tinha mantido mesmo depois de ter entrado. Só depois é que resolveu sair, fingindo já terem decidido que peças musicais iriam tocar no dia seguinte. Eu estava convencido de que o programa musical lhes era de todo indiferente. [...] E apertei-lhe a mão macia e branca com um entusiasmo pouco habitual.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - XI

A porta que dava para a sala estava aberta, e eu podia ouvir o som do arpeggio e das suas vozes. Conseguia ouvi-los, mas não distinguia o que diziam. Percebia-se que as notas do piano apenas tinham o objectivo de abafar a conversa... e talvez os seus beijos. Meu Deus! A fera que existia em mim enfurecia-se cada vez mais! E a minha mente imaginava as coisas mais terríveis. Ainda agora fico horrorizado só de pensar na fúria que se apossou de mim nessa altura.
O meu coração contraíu-se, parou e, de repente, bateu contra o meu peito como se fosse um martelo a bater na bigorna. Mas o sentimento que predominava a toda a raiva e a todo o ódio era a pena que eu sentia de mim próprio.
[...]
"Só me resta entrar", -disse de novo para comigo, e abri a porta de rompante. Ele estava sentado ao piano a praticar o
arpeggio com os seus dedos muito compridos e brancos voltados para cima; ela estava de pé numa das extremidades do piano, com algumas partituras espalhadas em cima deste. Foi ela que me viu ou me ouviu em primeiro lugar, e olhou-me. Será que estava assustada e a sua aparência exterior apenas simulava estar calma, ou a sua calma seria real? Não sei; o que é certo que ela não se mexeu, não fez qualquer movimento quando entrei; apenas corou; e mesmo isso só aconteceu mais tarde.
- Fico muito contente por teres vindo; ainda não nos decidimos sobre o que havemos de tocar no próximo sábado. [...] Toda a situação parecia muito simples e natural e, por isso, não fui capaz de argumentar o que quer que fosse, mas ao mesmo tempo estava plenamente convencido de que tudo aquilo não era verdade, e que tinham estado a concentrar os seus esforços para me enganar.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - X

Tocava muito melhor do que a minha mulher; ele ajudava-a e, ao mesmo tempo, louvava respeitosamente o modo como tocava. Ela parecia estar unicamente interessada na música e comportava-se simples e naturalmente. Quanto a mim, durante toda a noite senti-me terrivelmente torturado pelo ciúme, embora fingisse estar interessado na música.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - IX

Apresentei-o à minha mulher, e imediatamente a conversa se virou para a música e ele ofereceu-se para a acompanhar com o violino. Nessa manhã, bem como durante todo o período que se seguiu, a minha mulher esteve sempre muito elegante, com uma beleza sedutora e provocante. Era por demais evidente que ele lhe tinha agradado desde o início; para além disso, ela estava encantada com a ideia de ele a acompanhar com o violino, um prazer que ela tanto apreciava; tinha chegado até a contratar um músico de um dos teatros para o acompanhar ao piano. Os seus olhos reflectiam esta alegria; e assim que os nossos olhos se encontraram, ela adivinhou os meus pensamentos e, de imediato, alterou a expressão do seu rosto; e então demos início ao jogo do engano. Eu sorria com toda a graciosidade e parecia sentir-me verdadeiramente encantado.
[...]
Ela esforçava-se por parecer indiferente, mas ficou algo confusa com o falso sorriso e com a expressão que viu na minha cara, que mostrava o homem ciumento que lhe era familiar. A partir do momento em que o viu pela primeira vez, pude observar que ela tinha um brilho diferente no olhar; e, muito provavelmente devido ao meu ciúme, uma corrente eléctrica parecia ligá-los, conferindo-lhes o mesmo olhar e o mesmo sorriso;[...] então ele levantou-se para ir embora e, apertando o chapéu contra a coxa, sorriu, e assim ficou, olhando ora para ela, ora para mim, como se estivesse à espera que um de nós fizesse algo.
Recordo-me bem deste momento, porque durante esses segundos esteve na minha mão impedi-lo de continuar a frequentar a nossa casa e assim a catástrofe nunca teria ocorrido.
[...]
Mas eu não podia esconder de mim próprio que a presença daquele homem era uma tortura para mim; "Está na minha mão", disse para comigo, "evitar que ele nos continue a perturbar com as suas visitas; mas se admitir que ele me incomoda, também estou a admitir ter medo dele, o que não é verdade, isso seria demasiado degradante". E quando ele já se encontrava na antecâmara e se preparava para sair, insisti novamente para que nos visitasse nessa noite e trouxesse o violino; ao fazer isto sabia que a minha mulher conseguia ouvir tudo o que dizíamos. Ele prometeu fazê-lo e saiu.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - VIII

Adormeci lá pela madrugada. Quando despertei, a minha mulher ainda não tinha voltado. [...] E durante todo este tempo, e tal como antes, a minha alma assemelhava-se a uma arena onde se confrontavam o ódio (por me ter abandonado) e o medo (de que algo lhe tivesse sucedido). Às onze da manhã apareceu a irmã, como sua emissária.
- Ela está num estado lastimável; mas afinal o que se passou?
[...]
A mnha mulher apareceu por volta das três da tarde. Como não fez quaisquer comentários quando me viu, depreendi que pretendia fazer as pazes; disse-lhe que ela era responsável pelo sucedido, ao ter-me provocado com as suas recriminações. Virou-se para mim com um ar duro, que espelhava um sofrimento profundo; disse-me que não tinha vindo falar nas condições do divórcio, apenas tinha vindo buscar as crianças, pois era impossível continuarmos a viver juntos. Depois de a ter ouvido, comecei a explicar-lhe que eu não tinha culpa, ela é que me tinha conseguido enfurecer ao recriminar-me de modo tão venenoso. De novo me olhos de modo triunfante e cruel, e exclamou: -Não digas mais nada, estás arrependido. -Respondi-lhe que odiava comédias. Nessa altura ela gritou algo que não percebi, apressando-se em direcção ao seu quarto e fechando a porta à chave.
[...]
Empurrei a porta, que se abriu de imediato, visto o ferrolho não estar bem fechado, e apressei-me em direcção à cama. Estava deitada no leito, numa posição muito desconfortável, com a combinação vestida, e tinha ainda as botas calçadas. Na mesa de cabeceira encontrava-se uma garrafa de ópio agora vazia. Fizemo-la recobrar os sentidos, e aos primeiros sinais de ter recuperado a consciência, irrompeu em lágrimas e tudo acabou em reconciliação. Contudo os nossos corações nutriam o mesmo ódio de sempre um pelo outro, agora aumentado pelo sentimento de desespero provocado pela dor e o sofrimento desta última disputa, que cada um atribuía ao outro; e a vida continuou na sua rotina normal.
Mas estas discussões estavam constantemente a acontecer[...]. Numa ocasião, a situação chegou a tomar tais proporções que resolvi pedir um passaporte para sair do país. A discussão tinha durado dois dias; mas também essa acabou numa reconciliação cheia de ódios, e decidi ficar.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - VII

- És bem capaz de matar uma pessoa e depois dizer que ela está a fingir estar morta. [...]
- Quem me dera que morresses como um cão! -respondi-lhe, gritando. Recordo-me de ter ficado surpreendido e horrorizado depois de ter proferido estas palavras tão terríveis; não consigo perceber como elas podem ter saído dos meus lábios. Assim que as disse, corri em direcção ao escritório, depois sentei-me e comecei a fumar. Dali conseguia ouvir os seus movimentos na antecâmara, preparando-se para sair. Chamei-a: -Onde vais? -mas não me respondeu. O diabo persegue-a!, disse para comigo, enquanto regressava ao escritório, onde permaneci e continuei a fumar. O meu cérebro arquitectava mil e um planos para me vingar e, ao mesmo tempo, também engendrava ideias para reparar todo o mal que tinha sido feito e dito. Meditava sobre tudo isto, sem nunca parar de fumar. Pensei em fugir, em esconder-me, em emigrar para a América; cheguei mesmo ao ponto de pensar na melhor maneira de me livrar dela, imaginando ainda com alegria que depois dela morta, tudo voltaria aos seus devidos lugares e que eu me casaria com outra mulher maravilhosa, mais nova e pura. Mas para me livrar dela teria de ser através de morte natural, ou então pedia o divórcio; mentalmente comecei a pensar na forma mais propícia de provocar esta situação. Depois tomei consciência de que estava a desviar-me do problema e não estava a pensar como devia, e para toldar a minha consciência limpa, continuei a fumar.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

sábado, agosto 04, 2007

O livro da semana - VI

Sim, e tal como acontece aos bêbados depois de uma ressaca, parecia que os seus sentidos tinham agora despertado para esse mundo glorioso, que parecia já ter esquecido e onde não tinha sabido viver. "Tenho de fazer um esforço e agarrar esta oportunidade. O tempo voa, e depois será tarde demais." Isto era o que eu penso que lhe passava pela mente, ou o que sentia; e de que outro modo podia reagir? Até essa altura só lhe tinham ensinado que o único valor na vida era o amor. Era verdade que tinha casado e conhecido o que chamam de amor; mas estava muito aquém do que tinha esperado e desejado para si. E o casamento tinha-lhe causado muitos sofrimentos e desilusões, entre eles uma tortura com que nunca sonhara... os filhos. Este tipo de sofrimento tinha-a levado a um grande estado de exaustão; a partir de então os médicos informaram-na de como devia esquivar-se aos deveres da maternidade. Depois de ter usado "os métodos dos médicos", foi invadida pela felicidade e sentiu-se reviver e respirar tendo como único objectivo... o amor. Mas não estava a pensar no amor do marido... um amor ciumento envolto no ódio, e começou a imaginar outro tipo de amor, um amor puro... um novo amor... pelo menos, era o que eu imaginava quando a observava e lhe via no olhar vago uma esperança de alguém que espera algo.
[...]
No meu julgamento, todos os factos foram apresentados como se o motivo do meu crime tivesse sido o ciúme. Mas não foi o que se passou; pelo menos tiveram de ser alterados até que eu os aceitasse como verdadeiros. É indiscutível que o tribunal considerou que a minha mulher tinha pecado contra mim e, como resultado, eu a tinha morto para limpar a minha honra... foi pelo menos o que lhe chamaram... e a isso se deve o facto de eu ter sido ilibado. Durante o meu julgamento fiz todos os esforços para apresentar os factos como realmente tinham acontecido, só que o meu empenho foi interpretado como o desejo de reabilitar o bom nome da minha mulher. Mas a verdade é que, independentemente do tipo de relação que ela possa ter tido com o músico, esta teve muito pouca importância para mim e para os meus filhos. O que realmente pesou em tudo isto foi o que já lhe contei. A origem esteve no enorme abismo que existia entre nós, devido ao ódio terrível que nutríamos um pelo outro, e assim o menor toque, o menor impulso, eram suficientes para provocar uma crise.
[...]
Se o violinista não tivesse aparecido em cena, o seu lugar teria sido substituído indubitavelmente por outra pessoa. Se o pretexto do ciúme não tivesse surgido, outro teria sido encontrado. O que eu quero dizer é que todos os maridos que levavam o mesmo tipo de vida que eu, mais cedo ou mais tarde deixavam de ser indulgentes e acabavam por se separar das mulheres, ou acabavam por matá-las, tal como eu fiz, ou se suicidavam. Se há pessoas que nunca sentiram a necessidade de optar por alguma destas hipóteses, então digo-lhe que devem ser verdadeiras excepções. Antes de ter feito o que fiz, pensei muitas vezes em suicidar-me e, por seu lado, a minha mulher já tinha tentado envenenar-se.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - V

Como já lhe disse, abandonámos o campo e fomos viver para a cidade. Numa cidade as pessoas infelizes respiram mais facilmente do que no campo. Um homem pode viver anos e anos numa cidade e não se aperceber de que já morreu e apodreceu há muito tempo. Não arranja tempo para se divertir; está sempre atarefado; são os afazeres e deveres sociais, as artes, a sua saúde e a dos filhos, cuidar da educação destes; tem de receber estas e aquelas visitas, vendo-se obrigado a retribuir as mesmas, visitando assim amigos e conhecidos. Uma cidade tem sempre uma ou duas celebridades, e é absolutamente imprescindível tirar algum partido da sua presença. [...] A sua vida é uma verdadeira fraude. E era assim que vivíamos, estando menos susceptíveis ao sofrimento causado pela comunicação diária.
[...]
A minha mulher tinha melhorado visivelmente; estava cada vez mais atraente, com uma beleza amadurecida. Ela própria sentia isso, e agora cuidava muito mais da sua aparência. A sua beleza era provocante e perturbadora; era idêntica à de uma mulher de trinta anos bonita e saudável que já deixou para trás os trabalhos e as responsabilidades da maternidade. Por onde quer que passasse tinha a consciência de que os olhares masculinos se viravam na sua direccção, hipnotizados. Parecia uma égua, bem alimentada e voluptuosa, que tinha estado presa no estábulo e à qual tinham subitamente retirado o freio. Não havia qualquer tipo de jugo que refreasse noventa por cento das nossas mulheres. Ao sentir isto fiquei estarrecido de horror.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

sexta-feira, agosto 03, 2007

O livro da semana - IV

Depois de quatro anos de casamento ambos concluímos que já não era possível entendermo-nos e, por essa razão, cessámos todas e quaisquer tentativas de reconciliação. Cada um de nós mantinha as suas opiniões sobre este ou aquele assunto... por exemplo, no que dizia respeito às crianças. Os pontos de vista que eu defendia não eram assim tão importantes para mim, de modo a que eu não pudesse abdicar deles; só que as suas ideias eram exactamente contrárias às minhas; se lhes renunciasse, então cedia à sua vontade, e isso eu não podia permitir de modo algum.
[...]
Qualquer palavra proferida para além destes temas de conversa era suficiente para provocar novas hostilidades. E seguiam-se discussões e expressões de ódio por causa do café, da toalha de mesa, da carruagem, da carta escolhida durante o jogo... resumindo, por incidentes ou coisas que não tinham a menor importância para nós. Posso falar em meu nome: eu odiava-a como jamais se pode odiar alguém. Eu olhava-a a servir o chá, balançando o pé de um lado para o outro, e a levar a colher à boca sorvendo o líquido com os lábios; e odiava cada um desses gestos, como se a sua conduta fosse reprovável. Nesse tempo não me dei conta de que estes períodos de hostilidade ocorriam regularmente, correspondendo invariavelmente aos períodos a que chamávamos de "amor".
Os períodos de tempo e os níveis de sentimentos correspondiam a que depois de um período de amor seguia-se um período de ódio; depois de um período de amor intenso vinha um longo período de ódio; a um curto período de ódio sucedia-se uma fraca manifestação amorosa. Não nos tínhamos apercebido de que este amor e ódio eram os pólos opostos do mesmo sentimento.
Se ao menos tivéssemos entendido qual era a nossa posição e como era terrível a vida que levávamos; só que não nos apercebemos. A salvação e o castigo dos homens que levam vidas desregradas reside no facto de poderem "tapar o sol com a peneira", o que os impede de ver a situação real em que se encontram. Nós agíamos de igual modo. [...] Estávamos sempre ocupados; e ambos sentíamos que quanto maior fosse essa ocupação, maior era também a nossa capacidade de hostilidade e vingança recíproca.
[...]
Éramos dois prisioneiros agrilhoados um ao outro e que se odiavam mutuamente. Envenenávamos as nossas vidas e depois tapávamos os olhos ao que tínhamos feito. Nessa época não sabia que noventa e nove por cento dos casais viviam neste inferno. Nem tão pouco estava consciente de que me encontrava mergulhado num inferno, por isso não podia imaginar como viviam as outras pessoas.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - III

A galinha, por exemplo, não receia que possa haver ou não comida para o seu pinto; não tem a mínima noção das doenças que podem ser fatais; nem dos meios que podem salvar as suas crias dessas maleitas ou da morte; assim, os seus pintos não são fonte de aflições. Ela faz por eles o que a sua natureza lhe manda, e por isso eles constituem uma alegria na sua vida. E quando um pinto adoece, os seus deveres são muito claros: só tem que o alimentar e aquecer, pois ao agir assim está a fazer tudo o que é necessário. Se este morre apesar dos seus cuidados, ela não se pergunta porquê; apenas carcareja por algum tempo e pouco depois continua a sua vida como de costume.
[...]
Durante anos e anos afligiu-se, irritou-se ou tremeu de medo, só de pensar que a vida dos seus filhos (a quem estava ligada com toda a força do seu ser, tal como uma fêmea e as suas crias) dependia dos ensinamentos do doutor Ivan Zakharievitch e do que este tinha a dizer sobre esses assuntos. Mas, na realidade, ninguém sabia qual a opinião de Ivan Zakharievitch sobre esses assuntos, e ele então muito menos, porque estava ciente da sua ignorância; assim, tudo o que fazia era usar os melhores subterfúgios para que todos continuassem a acreditar que ele era uma sumidade na matéria.
[...]
A sua posição era muito complicada: ela era responsável pelas mais frágeis das criaturas, que se encontravam expostas a inúmeras vicissitudes. Sentia-se atraída pelos filhos com uma afeição verdadeiramente animal. Além disso, estes seres tinham sido confiados ao seu cuidado, só que os meios para os proteger tinham-lhe sido ocultados e, em vez disso, tinham sido revelados a homens (seres que lhe eram completamente estranhos) cujos serviços e conselhos ela só conseguia obter pagando quantias consideráveis e, mesmo assim, nem sempre. O que podia fazer então, para além de torturar-se?

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

quinta-feira, agosto 02, 2007

O livro da semana - II

É bem mais fácil uma nova geração corrigir os erros das gerações anteriores [...] do que serem sempre as mesmas criaturas a partir dos erros cometidos a mudarem o seu comportamento.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

O livro da semana - I

As mulheres estão bem cientes de que o chamado amor sublime e poético depende de encontros frequentes, do modo como penteiam o cabelo, do corte e da cor do vestido que usam e não de qualidades morais. Perguntem a uma mulher coquette que queira cativar um homem qual dos riscos prefere correr: o risco de ser acusada de dolo, crueldade ou até mesmo de conduta imoral face ao homem que pretende seduzir, ou o risco de lhe aparecer desarranjada e envergando um vestido feio. Sem hesitar, ela escolherá o primeiro.
[...]
As mulheres, principalmente as que já "frequentaram" a escola masculina, estão cientes de que são falsas as conversas sobre temas sublimes; o objecto de desejo do homem é a pessoa física e tudo o que ela queira revelar por entre uma luz sedutora; ela age de acordo com este conhecimento.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques [a partir da versão inglesa], Coisas de Ler, 2004

E a purga torna-se literária...

Hoje, quinta-feira, deu-me para estabelecer um livro da semana, só por esta semana, que eu não tenho especial queda para estas rubricas proto-televisivas. É quinta, mas o livro também é pequenito, até domingo pode ser que fique despachado. Convosco, excertos do Ensaio sobre o Ciúme, de Lev Tolstoi. Enjoy.